DESCE DESSE PALCO
“Nós somos todos os participantes desse teatro: na verdade nunca
morreremos quando acontece a morte. Só morremos como artistas.”
Clarice Lispector
Nesse ano e meio a morte decidiu protagonizar o espetáculo da vida. Cansou de se fingir de morta. Justo ela, que vivia ali quieta, fazendo figuração, silenciosa, escondida no fundo do palco.
Seu nome mal recebia crédito. Perto das crianças, então, nem pensar. Lembro da primeira vez que ouvi falar dela. Eu tinha 6 anos de idade. Minha mãe não parava de emagrecer, e a gente pouco via meu pai, porque ficamos praticamente morando na casa da minha vó. O que não era muito estranho naquela época do ano – mês de dezembro. Não fosse a morte rondando as conversas dos adultos em sussurros e o sumiço repentino da minha tia, nós teríamos vivenciado
as alegrias de sempre no quintal da vó.
Era lá que eu e todos os meus primos e minhas primas nos encontrávamos nos finais de semana e férias escolares para brincar e ganhar os mimos da vó, como poder tomar café com leite de noite e depois dormirmos todos espremidos sobre o tapetão azul peludo na sala. Cena repetida da vida que a gente não enjoava viver.
Mas, antes da cortina se fechar para o ano de 1994, a morte deixou a figuração de lado e se apresentou, roubando a cena final. Quem narrou sua chegada foi a dindinha. Com sua voz doce, de maneira encantadora, cheia de palavras bonitas para acalentar meu coração, ela fez a morte deixar de ser invisível pra mim. A partir desse momento, a morte aparecia insistentemente na minha mente de criança curiosa, me enchendo de perguntas sem respostas, de dúvidas, de medos.
Meses depois, tive que encontrá-la mais uma vez, quando ela, não satisfeita de ter levado a minha tia, resolveu voltar e tirar a minha vó de cena.
Pronto. Naquele segundo encontro eu agarrei um medo que minha mãe seria a próxima. Mamãe era o risco e o pavio. Se soprasse era capaz do vento ser mais rápido que a morte e levá-la para o céu. Eu torcia para que nenhum dos dois transformasse a mamãe numa estrela.
Felizmente a vida continuou atuando no quintal que não tinha mais a vó, mas tinha a gente – filhos, filhas, genros, noras, netos e netas, e o amor que ela deixou plantado em nós. A vida também foi ofuscando a morte com a lembrança das risadas da tia, que ecoavam pelas paredes da casa.
Esquecidos da sua existência, a gente foi crescendo. Focados na urgência da vida, deixamos a morte de lado. Pouco a pouco, ela foi se tornando figurante de novo, desaparecendo das conversas dos adultos e, consequentemente, dos nossos ouvidos de criança. No fundo, mesmo ainda menina, eu intuía que não era bem assim. A morte não morreu como a minha tia e a minha vó. Ela ainda circulava na coxia. Eu sentia a sua presença e temia.
Não matava lagartixa por nada. Desvirava qualquer sapato ou chinelo pela casa para garantir que nem a mãe nem o pai morressem. Tão pouco pronunciava o nome dela. Também fugia dos seus sujeitos e verbo. Dela, eu só queria a distância.
Mas não tem jeito. Invisível ou aparente, quieta ou barulhenta, protagonista ou figurante, ela nunca saiu de cena. A gente é que se distraía da sua presença no palco para garantir o bem viver.
Para minha defesa, passei a usar um bordão de minha mãe: "A única certeza na vida é a morte”. Embora não tivesse a menor ideia do que essa afirmação queria dizer de fato. Era minha frase de efeito, meu campo de força para lidar com essa personagem, que depois daquele primeiro contato na infância, reapareceu tantas vezes para levar amores meus. Personagens que contracenavam com a vida, e de repente, no ato seguinte, não estavam mais lá.
Último toque da campainha, e nada.
Merda!
Na plateia, atenta, eu não era mais menina, quando a vi de novo protagonista no palco. O que não diminuiu em nada o espanto, a tristeza e a dor que ela provocou em mim. Só foi diferente. Àquela altura eu já sabia que quem não conheceu ainda a morte também não conheceu a vida.
O diálogo entre elas sempre existiu.
A vida, como protagonista consciente do seu talento, sempre deu à morte o espaço necessário para sua atuação. Mas, nem mesmo a vida, no seu correr diário, poderia imaginar a força do protagonismo da morte.
Nenhum palco nesse planeta escapou de sua atuação.
Essa temporada parece não ter fim.
Aqui no Brasil, passamos de 500 mil mortos. Entre eles, o vô dos meus filhos… meu pai.
Escritora, roteirista e empreendedora. Seus trabalhos mais recentes são a antologia Respirar a emergência é essa, como organizadora e autora (ago/20) e o livro Que cabelo é esse, Bela?, da Editora do Brasil (2018). Tem 10 livros publicados e participação em diversas antologias, uma delas, Com o pé na terra, da Caleidoscópio Edições. Participou de Laboratórios de Narrativas Negras para o audiovisual: na Flup (2018), em parceira com a Globo que gerou o argumento para uma série de TV, e no projeto Itans (2019), que gerou o curta-metragem Chega de exceção.
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