O CÉU NÃO ESTAVA MAIS AZUL
Antes eu não entendia. O tio Celerino estava sempre igual, na mesma posição, enrolado naqueles lençóis com cheiro de mendigo, farelos, um pouco de baba no canto da boca. Elas disseram que ele fora um homem normal, até parecido com o nosso pai, o que era estranho, mas que depois ele se envolvera com umas turmas perigosas e acabou ficando assim, morre não morre, desse jeito. A tia Abigail, que não casou, cuida dele agora que a vó morreu.
Desde sempre, nas tardes de quinta nós visitávamos os dois. Antes de chegarmos, a mãe sempre recomendava: não fiquem encarando o tio de vocês, temos que deixá-lo em paz.
A sala da casa era escura e comprida. A cama do tio ficava ao lado do sofá, como se fosse uma poltrona daquelas que a gente pode até dormir, e ele ficava por ali, olhando tevê e fedendo um pouco. Algo que sempre me intrigou foi que ele, mesmo paralisado, tinha uma coisa esquisita no olhar. Sempre achei que fosse raiva.
Naquele dia as notícias na televisão não eram boas, todos estavam nervosos. Tinham matado uma vereadora, coisa de filme. O tio parecia interessado, não desgrudava os olhos do noticiário. Lembro que a tia desligou a televisão pra que ele conseguisse descansar.
O tio ficava olhando pela janela, parecia fazer força para conter a cabeça obre o pescoço.
– Mamãe, é verdade que o tio era bandido?
Quando minha irmã perguntou isso, levou seu primeiro tapa na cara. Eu fiquei assustado, nunca tinha visto nossa mãe bater nela. O tio olhou pra dentro e assim ficou.
– De onde você tirou uma coisa dessas?
– Os meninos comentaram no colégio.
A mãe me olhou pedindo explicações e eu apenas confirmei.
– O pai do Francisco disse pra ele. Disse que o tio era um vagabundo e que por isso foi preso no quartel e ficou assim.
No dia seguinte briguei no recreio. Dei um soco no Francisco, mas depois ele e os amigos me derrubaram e me chutaram até eu quebrar um dente. Eles disseram que eu era igual ao tio, que bandido bom era bandido morto. Ganhei uma suspensão de três dias e um castigo de uma semana.
Os meninos do colégio não brincavam mais comigo. Os da rua também não. Riam do meu dente quebrado e não me escalavam mais no time da quadra. Foi mais ou menos nessa época que eu comecei a passar as tardes na casa da tia Abigail.
Aprendi a trocar as fraldas do tio, ajudei a limpar os lençóis, passava um limpa-farelos na cama e o tio sempre me olhava, procurando algo que nunca entendi. Depois que ele estava limpo, a tia sempre me levava no escritório, aquela sala amontoada de estantes escuras, livros e grãos de poeira luminosos que pairavam sobre alguns raios de sol.
– Hoje pode levar esse daqui. Teu tio conheceu esse homem que está na capa. Lembra da nossa regra?
– Não contar pra mamãe.
Ela sorriu e escabelou minha franja. Eu lia as histórias em voz alta, algo que o tio parecia gostar, seus olhos sorriam. Desde que a tia me pediu para ler o primeiro, era um livro atrás do outro. Os livros estavam velhos, lidos e sublinhados, tinham cheiro de gaveta e eu notei que as histórias se pareciam. Eram histórias tristes, tinham pessoas que não podiam se reunir, que se encontravam às escondidas, tinham cenas horríveis nos porões, essas eu pulava algumas partes. As que mais me doíam eram as histórias das famílias destruídas, de gente que nunca voltou pra casa e os parentes esperavam, esperavam. Alguns esperam até hoje.
Mas hoje o dia estava estranho. Estávamos com mais calor que o normal, a sala tinha um fedor pegajoso. Depois de ajudar na higiene do tio, abri a janela pra entrar algum vento. Nada. O céu não estava mais azul, o sol se escondeu atrás de pesadas nuvens que filtravam de chumbo a paisagem. O tio Celerino tinha os olhos fixos no noticiário. O apresentador do jornal, depois de comentar o número de mortos na pandemia, começou a anunciar que o presidente tinha mandado os militares comemorarem algo. Antes de saber o que era, eu desliguei a televisão.
Natural de Bagé – RS, é autor de "Noite escura", "Andarilhos" e “Ainda que a terra se abra”. É um dos idealizadores do FestFronteira Literária, festival voltado à promoção e discussão da literatura na cidade de Bagé.
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