Fotografia da autora de ©Vitorino Coragem
CARTA A SYLVIA
Serei prudente .
não escreverei mais teixos.
Nem saberia enxertá-los
na cova de um texto colher os frutos
ásperos a nódoa manchando
as linhas da mão.
Que sei eu de teixos? Pássaros
com folhas perenes não caem nunca
sequer com o vício do outono.
Outras árvores talvez
se tivessem uma resina quente
a colar-se à agonia dos dedos.
Ou pedras sim onde tropeçar os passos
da longa caminhada.
De todo o modo
é Inverno aqui: por mais que cerceie os teixos
e semeie cravos no túmulo de uma pedra
(as mãos eivadas de rachar escavando)
só túlipas florescem com os seus pés altíssonos
rugindo mistérios a boca em sangue
a cerrar fileiras sobre os caules rígidos
veio
verde
teso
erecto
o chão exausto
sem uma pouca de água
para amaciar a sede.
Entre mim e o mundo?
Esta perfeita grade
cárcere de corolas ardidas
sangue farpado.
Fosse um roseiral a vida
– não este campo de túlipas rebentando à minha passagem –
poderia talvez podá-la.
Uma túlipa não tem espinhos nem é flor:
lasca ferindo dentro
a eclodir o rubor da cólera.
Até um teixo a derramar-se em sombras
(mesmo uma escova de dentes
a rapar a gengiva nua
no caroço do verso)
é mais inócuo
do que o punho fechado de uma túlipa
a estoirar por dentro da palavra.
Sim terei prometo cuidado com os teixos.
Mas diz-me:
Como arrancar as túlipas
que crescem daninhas todas as quatro
estações:
Inverno, Inverno, Inverno e Inverno?
Rita nasceu em Lisboa e é poeta, crítica literária, professora do ensino superior e escritora de mais de uma dezena de livros para infância. Foi membro da Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian e escreve regularmente sobre poesia e ensaio, nas mais diversas publicações. Em 1998, publica o seu primeiro livro de poesia (Poética Breve, Black Sun Editores), a que se seguiram outros dois (Na estranha Casa de um Outro e Dos Sentidos das Coisas), escritos com uma bolsa de criação literária atribuída pelo IPLB. Em 2015 publica o livro de poesia Roturas e Ligamentos (Abysmo) em parceria com André da Loba (ilustrações), seguindo-se As Orelhas de Karenin (Abysmo, 2019). Certa vez, num encontro numa biblioteca escolar, um menino chamou-a «Escritora Infantil». Desde esse dia, assumiu o epíteto, brincando obsessivamente com palavras.
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