Fotografia do autor por © Lara Jacinto
SÓ PORQUE UMA ESCADA NÃO RESPONDE
Sempre falei com cães e gatos e pássaros e árvores e flores e até mesmo com insetos, como o louva-a-deus, que não se sentem tentados em me morder ou picar.
Cumprimentá-los faz-me sentir como se fizesse parte de um mundo amigável (mesmo que não seja o caso).
E acho impossível que isso lhes faça mal.
A menos que contasse uma história longa e chata, é claro; ninguém, nem mesmo uma joaninha, quer ouvir uma história entediante da boca de um estranho.
Ocasionalmente, também conversei com paredes, cadeiras e mesas.
Quando troco ideias com eles, é possível que esteja a penetrar no território da loucura, mas quem poderá ter a certeza?
Só porque uma escada não responde, não significa que não esteja a ouvir.
Noto que agora falo menos com animais, plantas e objetos inanimados.
A máscara abafa esse desejo.
Converso, talvez em compensação, muito mais com eles em pensamento.
E envio mensagens de saudação e votos de boa saúde a todos que vejo usar máscara.
(Vou abster-me de dizer o que digo em silêncio àqueles que se recusam a usá-la, porque não é muito simpático.)
Também sempre conversei com as personagens dos livros.
Sim, eu disse a Hester Prynne que teve a má sorte de nascer muito à frente do seu tempo e agradeci a Boo Radley por ter salvado a jovem Scout e perguntei à Medusa por que raio nasceu ela com cobras venenosas e aladas em vez de cabelos.
Se leu Um Conto de Natal então pode adivinhar que também mandei o Ebenezer Scrooge à bardamerda e disse-lhe que ganhasse tino e começasse a comportar-se como um mensch.
E talvez ele me tenha dado ouvidos, porque é isso o que lhe acontece no final do livro.
Então, talvez, tudo o que vemos, ouvimos ou pensamos, esteja em contacto com tudo o mais.
Ou talvez não.
Não importa, porque já tenho 65 anos e não acredito que algum dia venha a ter a certeza.
Continuo a falar com qualquer interlocutor, em voz alta ou na minha cabeça, e, embora não fique à espera de resposta, guardo a esperança de que isso nos traga algum bem.
Este poema foi escrito originalmente em inglês e português pelo autor. A versão portuguesa teve edição de Gabriela Ruivo Trindade e Nuno Gomes Garcia.
Richard Zimler nasceu em Nova Iorque. Fez um bacharelato em Religião Comparada na Duke University e um mestrado em Jornalismo na Stanford University. Em 1990 foi viver para o Porto, onde lecionou Jornalismo, primeiro na Escola Superior de Jornalismo e depois na Universidade do Porto. Em 2017, a Câmara do Porto atribuiu-lhe a Medalha de Honra da Cidade. Nos últimos 24 anos, publicou 12 romances, uma coletânea de contos e cinco livros infantis, que depressa entraram nas listas de bestsellers de vários países (Portugal, Brasil, EUA, Inglaterra, Itália). Cinco dos seus livros exploram a vida de diferentes gerações de uma família judaica-portuguesa, os Zarco. Estes livros constituem o seu Ciclo Sefardita. Os seus mais recentes romances são O Evangelho Segundo Lázaro, Os dez espelhos de Benjamin Zarco e Insubmissos. Zimler tem dupla nacionalidade, americana e portuguesa.
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