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Ricardo Fonseca Mota

Atualizado: 28 de fev. de 2022



Fotografia do autor de © Gi da Conceição




NEGAÇÃO DA NOITE – ANOTAÇÕES



1. Fui alvo de um libelo ardiloso e injusto. Reclamar inocência é a sina dos condenados – o mais vil dos homens indigna-se perante os jurados e desmancha-se em contrição defronte do cadafalso. Entreguei-me com descaso evitando assim penhorar a dignidade.


2. Contra mim os oligarcas arremessaram uma das maiores condenações, manhosa mortificação. Demorei a entender.


3. “Declaro o senhor impotente sob a força da lei.”, foi assim que tornaram pública a agenda da minha alienação. Intimaram-me sem intermediários – nenhum soldado, nenhum agente de força, nenhum tecnocrata. Não fui conduzido à presença de um carrasco nem de um pai. Sem grilhetas, sem açoites nem masmorras, homens comuns convidaram-me a regressar a casa. Impedem-me de atravessar a porta, mas não posso considerar isto um castigo. Aqui estou seguro.


4. «Tem graça como nos sentimos satisfeitos na companhia dos nossos semelhantes: miseráveis como nós, impotentes como nós, não nos ajudarão; morreremos sós.», Blaise Pascal.


5. Apesar de a mesma casa, os mesmos sistemas de conforto, os mesmos vícios, jamais um lar. As mesmas janelas através das quais um jogo de espelhos onde me vejo centenas de vezes, criando um mosaico onde se percebe o meu rosto bestializado.


6. As ondas de choque do exílio são como os desenhos do seixo no espelho do rio.


7. Primeiro adoeci de isolamento. Uma parede frágil de mais para me separar dos outros condenados, porém forte para me apartar da evasão. Fui ao fundo deste castigo. Lobotomia do longe.


8. Ultrapassado o limiar da morte por solidão aproximei-me de um abismo maior. A minha compreensão de ruína não contemplava este inferno.


9. Uma cela. Um esquife. Um livro em cima do psiché.


10. Cedi à tentação. A leitura.


11. Fechado num calabouço com um tubarão que não dorme. As sombras, as vozes, as tensões, as vontades. As presenças garantem o assédio final da loucura. Um livro está cheio de gente pronta para o assalto. Não importa se vejo as pessoas nele impressas. A sua influência emerge de acreditar nelas. O peso da verdade supera o da realidade. Ao contrário desta, a verdade não é volátil nem múltipla. É táctil, massiva, provida de fé, circunscrita às minhas próprias limitações.

12. As presenças saem do livro, ocupam o espaço.


13. O cárcere vazio era afinal um ilusionismo. O meu degredo não é estar encerrado. Comparecem os meus familiares, os vultos do passado, a sombra do futuro, a velocidade – predadores desgovernados a mando da incerteza.


14. A minha sevícia é estar obrigado à multidão. O mais doloroso castigo da condição humana é a impossibilidade de estar sozinho.


15. O desespero de não sentir ausência nunca mais.


16. Quando a presença não é antídoto de solidão, mas furto de presença, negação da nossa treva.


17. Até quando? Aguentaria cem mil anos, se soubesse. As mãos da dúvida ordenam que me afogue com urgência no rio Letes.


18. «Vem-me um vómito: tenho vontade de fugir de mim e dos outros: só o que é selvático me interessa e acorda em mim sonho, perfume e ferocidade… Quero saber o que me impede agora de matar.», Raúl Brandão.


19. Extinção do sagrado.



 

Formado em Psicologia pela Universidade de Coimbra, Ricardo é autor, psicólogo clínico e promotor cultural. O seu primeiro romance Fredo venceu o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís em 2015, foi semifinalista do Oceanos - Prémio de Literatura em Língua Portuguesa em 2017, e está traduzido e publicado na Bulgária. Representou Portugal na 17ª edição do Festival do Primeiro Romance, em Budapeste. As aves não têm céu é o seu segundo romance. Publicou também Germana, a begónia (2019, teatro) e, com o pseudónimo Ricardo Agnes, In Descontinuidades (2008, poesia).

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