ELEGIA
Você me escuta, querida? Sim, porque eu estou te vendo aí, nesta janela. Olha, sério, não precisa me dizer mais nada, sei que a palavra lamento rima com tempo e, agora, não podemos nos permitir fazer qualquer graça ou poesia, precisamos de mais objetividade. Diante de tudo que estamos vivendo, diante de tudo que temos para resolver, necessitamos ir além, então, por favor, necessito apenas que me escute, preste atenção no que vou dizer. Por favor, não chore, vamos parar de remoer o passado, faça um esforço. Conecte-se comigo, tente ouvir minhas razões. Eu sei, às vezes também me parece injusto, mas seja capaz de ultrapassar qualquer espécie de autocomiseração, não deixe que a dor a transforme numa pessoa rancorosa, ruim. Eu te peço, em nome do amor que você sempre sentiu por nós, sua família, por favor, escute-me, eu te imploro! Avalie com carinho este pleito que te faço, minha aflição é quase capaz de transformá-lo em uma prece, espécie de oração silenciosa. Neste momento, minha filha, você ocupa uma espécie de lugar de Deus para mim. Não, não como quando era a criança por quem o meu mundo girava, mas como o único alguém capaz de, agora, me permitir certa paz. Há mistério no universo, Nina, até nossos corpos não nos pertencem, são emprestados. Precisamos respeitar nossa impotência, aquilo que, em nós, nunca se dará. É natural caçarmos culpados, o desespero faz isso mesmo com a gente, mas o condomínio vivia lotado, não se pode ter certeza da origem do problema. Não, não há o que ser feito, é preciso seguir em frente. Sim, tenho saudades de casa, lógico, ainda mais depois que soube do Gus. Pense, Nina: um cachorro na janela! Um cachorro na janela! Não é estranhamente bonito? Insólito? Um cachorro na janela? Como não ver beleza nisso? O bichinho lá, em silêncio, solitário, horas a fio, acompanhando o vai e vem dos carros, o pouco movimento das ruas... Como se desejasse entender o que, afinal, aconteceu com aquele seu mundo antigo, com aquela sua vida antes formada apenas de constâncias, com aqueles últimos dias de estranhezas sem explicação... Cachorros têm memória, minha querida, mesmo que não saibam criar narrativas inteligíveis a partir das cenas que presenciaram. Lembra de Tcheco? Não sei se você será capaz de recordar... Mas, então, ele detestava sua avó Marisa, sabia? Nunca havia te contado isso ou o motivo dessa implicância porque achava feio ficar falando mal da família. Mas já que seu pai não está mais entre nós, posso revelar que aquela mãe dele era um diacho! Muito, muito malvada, ela vivia de implicar com os mais fracos, incluindo com o coitado do Tcheco! Era no meu pobre vira-lata, no meu pobre vira-lata preto, que Dona Marisa descontava toda a raiva que ela sentia de mim. Para os vizinhos, claro, ela não admitia ficar por baixo, no mercado, me diziam que ela falava que tinha ficado feliz pelo filho ter se casado com uma mulher amorenada, afinal, quem desejava netos esbranquiçados como os da Nádia, a funcionária do caixa? É verdade que Dona Marisa, aquela velha endemoniada, nunca teve coragem de usar as palavras devidas, morreu com elas atravessadas na goela, sabia que preconceito é crime, além do que, se ela agisse mal comigo, seu pai não aceitaria mais sua presença aqui em casa. Eu sempre achei triste briga de família e nunca incentivei coisa assim, minha filha, fora que tentei entender a pobreza interna de sua avó, tem um povo lá do Sul que sempre foi deste jeito. Nina, pode acreditar, eles pensam ter sangue superior, abrem a boca para dizer com orgulho que são descendentes de europeus, ora, grandes coisas, os parentes deles destruíram tudo que podiam neste país, não passavam de uns bárbaros e ainda há gente que se ache melhor por fazer parte disso! Jesus me perdoe, Nina, mas aquela sua avó nunca foi graça. E uma agressão é sempre uma agressão, minha filha, ainda que a gente goste da pessoa que a cometeu contra a gente. Foi Andrea que me disse isso, isso de que uma agressão é sempre uma agressão, certa vez, fui desabafar com ela de nossa situação familiar porque ela é formada em psicologia, lembra? Com certeza, sabe como ajudar com essas coisas, usa bem as palavras, Leo e Cristina sempre morreram de orgulho dessa menina! Não, não é à toa, Andrea sabe mesmo das coisas, uma agressão é sempre uma agressão e jamais perdoei Dona Marisa pelas que ela cometeu comigo. Bom, o que estou tentando dizer é que, bem cedo, Nina, eu diagnostiquei o problema de sua avó e aprendi a lidar com seu jeito presunçoso, família não é apenas um mar de rosas, todas têm problemas, é necessário que você entenda isso. Quando a velha passou dos limites com Tcheco, lógico, eu a coloquei no seu devido lugar, mas também fui eu que a arrumei para ser enterrada, escolhi seu vestido mais elegante, passei maquiagem no seu rosto endurecido, afinal, qualquer mulher merece essa dignidade mínima. E é por isso que eu estou te dizendo todas essas coisas, minha filha! O Beto sempre foi seu melhor amigo, parceiro de todas as horas, ajudou a pagar seu vestido de noiva, que loucura é essa que deu na cabeça de vocês? Por que resolveram contaminar uma relação tão linda com essas coisas de gente que mal conhecemos, com esse povo da televisão? Não sabem que nenhum deles presta, que só vivem de mentiras? Eu não entendo muito dessas coisas de política, você sabe, mas o Beto também teve seus motivos. E irmãos nunca deveriam ficar brigados por conta de nada, sempre admirei demais a amizade de vocês dois, gostavam de fazer tudo juntos, desde pequenos! Quando você terminou faculdade, eu e seu pai morremos de orgulho, nunca nenhum de nós havia ousado pensar que teríamos uma pessoa formada em casa, que dirá, uma doutora! E o Beto também, Nina, ele também não se conteve de orgulho quando leu a mensagem que você escreveu no seu convite, levou para os colegas do batalhão verem o quanto a irmã era inteligente. Quero também que se recorde da época em que você precisou se mudar para o apartamento perto do hospital da residência, lembra que ele te ajudou com as malas e todas as outras coisas? É feio dois irmãos assim, minha filha! Não esqueça que, por um bom tempo, quando você apenas se dedicava aos estudos, era o Beto quem ajudava com o supermercado porque seu pai já havia tido o infarto e vida de representante comercial é instável, depende de como está a economia. Você não acha que ver as roubalheiras dos políticos e ter que abandonar a escola para trabalhar, desde cedo, não fez seu irmão ficar revoltado? Estou te dizendo essas coisas porque desejo que você se lembre também das coisas generosas que ele fez por todos nós. Ele nos sustentou por um bom período, ninguém é apenas um erro cometido, a vida é filme e não um minuto capturado, como um retrato. Você precisa ser capaz de entender que ele não estudou como você, as ideias dele refletem o ambiente que ele vive, as pessoas são diferentes, cada uma guarda sua graça própria. O Beto é simples, e mesmo que você não concorde com as visões dele agora, não é possível que não seja capaz de olhar com mais afeto para sua situação. Nina, você pensa que ele não percebia a vergonha que você sentia dele, nos últimos tempos? Até eu ficava acanhada na frente de seus novos amigos, sentia receio de que falássemos alguma bobagem ou que parecêssemos um bando de pobres sem educação. Aquela moça que divide a casa com você agora, aquela Aline, não, eu nunca gostei tanto dela porque ela é caladona, enfezada, se acha melhor, toda linda porque pinta o cabelo de rosa, sei lá. Mas o Beto nunca disse um ai dessa moça, jamais implicou com ela e pouco se importou quando ficaram insinuando, no bairro, que você virou sapatão. Eu sei que você sente raiva agora dele, mas precisava ter escutado as coisas que ele me disse na última vez que falamos, o Beto chorou copiosamente, fez um vídeo com as crianças me dizendo um monte de coisa bonita, não é fácil ter que lidar com tanta violência no dia a dia, ver um monte de miséria, fora o medo de ser morto em algum tiroteio. E, vamos lá, no início de tudo, você também falava mal dos cubanos, dos outros que estavam no poder, não era assim tão contra ao capitão, tanto que votou em branco porque ninguém a representava... Nina, cada pessoa tem o direito de fazer sua opção, o Beto é militar, homem da igreja, a mentalidade dele é nesse sentido, você precisa entender, vai ficar brigada com o próprio irmão por causa de política? Ah, eu sei, talvez ele não devesse mesmo ter ido me visitar, mas fui eu que pedi, estava com muitas saudades, me sentindo sozinha demais nesta pandemia... E como a gente pode ter certeza de que foi o Beto mesmo? Tem o mistério da vida, Nina! Nina? Você me escuta, querida? Eu estou te vendo pela janela. Olha, não precisa me dizer nada agora, quero apenas que preste atenção.... Por favor, não chore, eu amo demais vocês dois, meus filhos... por mim, por favor, perdoe o Beto, Nina, eu estou aqui, minha amada e querida filha, Nina, eu a amo muito, minha filha, não saia agora, Nina, quero ainda te pedir, te dizer que - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - -- - - - -- - - - - - - -- - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - -- - - - -- - - - - - - -- - - - - - - - -- -
– Nina, é o Dr. José Carlos. Não sei nem como te dar esta notícia, minha querida..., mas sua mãe não resistiu. Aconteceu minutos após você vê-la pela janela da CTI, assim que seu plantão terminou. Você sabe, Nina, não havia mais o que ser feito. Sentimos muitíssimo por sua perda. Que você encontre a força necessária para suportar tudo isso. Da nossa parte, pode ter certeza de que vamos concentrar todas as nossas forças no Alberto Júnior. Os resultados dos exames de hoje foram bem animadores. Ele, provavelmente, sairá da intubação amanhã. E, claro, se você tiver em condições, venha acompanhá-lo. Olha, eu sei que a hora é muito difícil, mas preciso dizer: onde quer que esteja, sua mãe está muito orgulhosa de você. Nada é mais bonito do que este seu amor por seu irmão.
(Elegia: poema terno e triste. Meu país: agora uma memória, um sol que não mais se há. Lembro, sinto: aquele Brasil. Elegia: o sonho de uma terra viva. Com a literatura, volto a rezar.)
Para Bel, Lia e todos que perderam parentes na pandemia
FASCISMO
Para Erika Ramos
Naquela pele como pátria,
extensão devastada,
conheceu a guerra
Não esperavam resistência
Queriam que ela cruzasse braços,
pernas
Com núcleo à vista
Sorte de menina
(diziam)
era seu território ocupado
Em plena luz do dia
Mesmo assim,
rendida
continuava a lhe ser imputado
Tipo penal imaginário
Mas muito bem definido
Artigo primeiro:
mato
sua pele:
vasta vegetação antiga
Pena prestes a ser executada
Cruzes prontas para ela
Feitas de seus próprios braços,
pernas
Um corpo jaula
Enquanto alguém comentava
Melhor assim
Só chove lá fora
Em si mesma, restará protegida
Mas é justo no canto das estátuas
Neste país,
vasto cemitério de mulheres
Nas lápides sem inscrição
Que descobrimos o único epitáfio possível:
morrem de combustão
Aquelas que não ousam tempestades
GENOCÍDIO
Para Jorge Santiago
Qual idioma se fala no inferno?
- quis saber a criança
cuja mãe foi vítima
Os mortos da pandemia
ainda são capazes de pronunciar
a palavra amor?
E seus assassinos?
Nos hospitais,
nos cemitérios,
ou mesmo,
no paraíso,
existe algum setor de tradução
para o inominável,
para este homem
que foi escolhido?
O que, afinal, nos dirá
o dono das chaves,
o tal grande Salvador?
Como explicará sua seleção?
Como justificará porque
tantos não salvou?
A criança pergunta,
fabula,
mergulha na dúvida,
se afogando no vazio
Porque nunca houve pai
Tampouco avô
E estas respostas
não achou no livro
Do masculino,
apenas uma referência
aquele que o tio gostou
aquele que aparece na televisão,
aquele mesmo
o assassino
morto desde menino
que nunca aprendeu a dizer
a palavra amor
CONTÁGIO
Para Andréa Pato
Eu sinto que poderia ser uma destas mulheres
que, em nome do pai, perdem a alegria
que, em nome do filho, destroem o feminino
E, por fim, quando chega a noite
Terminam o sinal da cruz
Rogando pelo espírito santo,
enquanto pulam no precipício
Autora de Mundos de uma noite só (Faria e Silva, 2020), Femininamente (Prêmio Braskem de Literatura, 2003), O que não pode ser (Prêmio Arte e Cultura Banco Capital, 2006) e Vestígios da Senhorita B (P55, 2009). Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), ela é também advogada.
Comments