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PAULO TASSA





BOCA ABERTA NA PAREDE



sala: é como uma boca aberta na parede,

engasgada com a estética do tempo, babando luz

contra os meus dois olhos humanos e cansados.

dela vejo

a chuva que cai

coletiva e desinteressada

como quem morre e, feliz,

abraça o chão com escândalo.


esquina: daqui, somente a curva respira

mistérios de um poema em silêncio, os dias

eternos, a pálpebra fechada das horas,

o descanso infinito das paredes.


gente: cada pessoa existe

em uma casa calada casa alguma,

redoma redimida em carne ou sangue, tomai e comei.

isto é o meu corpo

morto, não sei.


relógio: vou me tornando

esta recessão da existência.

perco de vista o tempo se derretendo

na consecução dos instantes.

este penhasco das horas – dele caio

e moro para sempre em meu desabamento.


rosto: tenho diante de mim apenas

o rosto cansado e os conflitos

com os quais tenho feito alguma amizade sincera,

sempre e quando os humores alcançam

saída rumo ao ar seco.

os meus lábios pouco a pouco decifram

a gramática das horas, leem

no relógio (que carrego dentro)

a escrita do escombro.


carne: derrete-se sobre o meu corpo

um agora solitário e distendido,

susto menor que o susto.

sou o último evento antes do fim do mundo.

é aqui neste corpo solitário, meu primeiro destino, é aqui

que o fluxo dos dias se faz

um rio sem foz,

uma estúpida vazão entupida, espessa de si mesma,

um derramamento incerto muscular.


voar: a vida e o tempo são

duas jaulas necessárias.

aquela se abre quando se dissipa

e este, simplesmente quando passa,

dando espaço à outra

e outra e outra e outra jaula.


desejo: não quero mais sair de casa,

a casa é o corpo.

não quero mais sair do tempo,

o tempo é a casa.

não quero mais nada exceto

o pulsante presente em que vejo

portas para dentro de portas

que se desdobram como uma boca aberta na parede,

engasgada com a estética do tempo, babando luz

contra os meus dois olhos humanos e cansados.



 

Formado pelos trânsitos entre Brasil, Portugal e Espanha, onde vive atualmente, Paulo Tassa é poeta, escritor, editor, tradutor e crítico literário. Publicou os poemários "caída" (Letramento, 2018) e "o homem à espera de si mesmo" (Mosaico, 2021). Tem poemas e contos esparsos em revistas brasileiras, assina uma coluna de crônicas na revista LiteraturaBr e escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil.

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