BOCA ABERTA NA PAREDE
sala: é como uma boca aberta na parede,
engasgada com a estética do tempo, babando luz
contra os meus dois olhos humanos e cansados.
dela vejo
a chuva que cai
coletiva e desinteressada
como quem morre e, feliz,
abraça o chão com escândalo.
esquina: daqui, somente a curva respira
mistérios de um poema em silêncio, os dias
eternos, a pálpebra fechada das horas,
o descanso infinito das paredes.
gente: cada pessoa existe
em uma casa calada casa alguma,
redoma redimida em carne ou sangue, tomai e comei.
isto é o meu corpo
morto, não sei.
relógio: vou me tornando
esta recessão da existência.
perco de vista o tempo se derretendo
na consecução dos instantes.
este penhasco das horas – dele caio
e moro para sempre em meu desabamento.
rosto: tenho diante de mim apenas
o rosto cansado e os conflitos
com os quais tenho feito alguma amizade sincera,
sempre e quando os humores alcançam
saída rumo ao ar seco.
os meus lábios pouco a pouco decifram
a gramática das horas, leem
no relógio (que carrego dentro)
a escrita do escombro.
carne: derrete-se sobre o meu corpo
um agora solitário e distendido,
susto menor que o susto.
sou o último evento antes do fim do mundo.
é aqui neste corpo solitário, meu primeiro destino, é aqui
que o fluxo dos dias se faz
um rio sem foz,
uma estúpida vazão entupida, espessa de si mesma,
um derramamento incerto muscular.
voar: a vida e o tempo são
duas jaulas necessárias.
aquela se abre quando se dissipa
e este, simplesmente quando passa,
dando espaço à outra
e outra e outra e outra jaula.
desejo: não quero mais sair de casa,
a casa é o corpo.
não quero mais sair do tempo,
o tempo é a casa.
não quero mais nada exceto
o pulsante presente em que vejo
portas para dentro de portas
que se desdobram como uma boca aberta na parede,
engasgada com a estética do tempo, babando luz
contra os meus dois olhos humanos e cansados.
Formado pelos trânsitos entre Brasil, Portugal e Espanha, onde vive atualmente, Paulo Tassa é poeta, escritor, editor, tradutor e crítico literário. Publicou os poemários "caída" (Letramento, 2018) e "o homem à espera de si mesmo" (Mosaico, 2021). Tem poemas e contos esparsos em revistas brasileiras, assina uma coluna de crônicas na revista LiteraturaBr e escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil.
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