Fotografia do autor de ©Raquel Barata
O AVESSO DA CASA
Se a realidade me parecia tão irreal, tão fora do comum quando olhava lá para fora, para as nossas ruas cheias de cotidianos vazios – afinal nunca tínhamos vivido nada parecido –, era preciso encontrar algo no mundo do fantasioso, que me trouxesse de volta algo mais parecido com o real, uma impressão do real, com cores vivas, e mesmo assim estranhas. E por isso as fotos estão em negativo, que é o oposto daquilo que vemos com os nossos olhos crus.
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mundo dentro de mundo
terra casa corpo televisão telemóvel féretro
caixas dentro de caixas dentro de caixas
a televisão enche a casa
não deixa lugar de memória
apaga-se no que religo
apaga-se no que desligo
ela é o centro matriarcal
aditiva feroz meiga umbilical
apaga-se no que religo
apaga-se no que desligo
na boca da notícia habita a cotação da bolsa
o gol de trivela e os números da dor
apago-me no que religo
apago-me no que desligo
à noite
cães e gatos mimetizam
os pássaros
perderam o pio
pressentem a inquietação das casas
a distância de outros tempos
sabem que o nosso excesso de carinho
é desespero à flor do pelo
quem é este que se me apresenta?
lembra-me alguém em tempos de férias
olha para os dias parados no espelho e
não enxerga mar gente selfies
a chuva entrega-se toda
e ela é só amor na sua dádiva
desconhece o nosso vírus
simplesmente chove
a casa ameaçada pelo invisível
não se aguenta nas pernas
o lugar vago na poltrona
o lugar da televisão
o lugar de muitas idades
o lugar vago na cama
do hospital
hoje o invisível venceu
o silencio corta
a cidade de domingos
e nunca mais é segunda-feira
Natural do Rio de Janeiro, é poeta, fotógrafo e editor. Autor de Poemas do dilúvio, Insulares, Páginas despidas e O relógio avariado de Deus. Como fotógrafo, tem vários livros publicados, e exposições, onde se destaca Ar de Arestas, no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, no Brasil; e integrou a iniciativa Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura 2017, com o ensaio Quasinvisível. Vive em Portugal desde 1991. É editor nas Edições Pasárgada. Assina a coluna Quem eu vejo quando leio, para o Jornal Rascunho.
Muito bom ler seus textos, as poesias e te ver nas fotografias, há muita riqueza em tudo o que faz devido a sua imensa sabedoria, sensibilidade. Parabéns, por mais este excelente trabalho! 🌹
Sempre um prazer ler-te, através de textos e poesias e ver-te, através das fotografias! Obrigada! Parabéns 👏💐.
Ozias Grande Artista💙
Gratidão pela partilha do teu Talento!!
Uma maneira muito singular e sentida de ver estes dias estranhos que estamos vivendo. Parabéns, Ozias.