À PROCURA DE MORTA K.
1. Pranas
A praça estava cheia de gente de olhar vazio, e todos deambulavam à sorte, uns desenhando círculos de pegadas na neve, outros deslocando-se em linha reta, apenas virando em ângulo abrupto quando encontravam os muros da catedral que, por aqueles dias, celebrava mil anos, efeméride supérflua visto já ninguém contar o tempo, pois ele de nada serve a partir do momento em que a memória se desvanece. A própria origem da epidemia do olhar vazio e da amnésia coletiva fora esquecida.
Pranas também flanava pela praça e também tudo esquecera. Ou quase tudo. A doença não atingia todos da mesma maneira. Uns falavam, outros haviam esquecido como o fazer. Se alguns ainda conseguiam ler e abarcar o sentido das palavras, outros juntavam as letras para formarem apenas uma pilha de sons sem significado. Ele desaprendera de falar, mas compreendia o que lia. O seu olhar vazio, inerte e sem brilho, era todavia idêntico ao dos outros. Aquilo que o diferenciava estava guardado no seu bolso: uma caixa negra que falava. Uma voz metálica que escutava sempre que, para grande e repetida surpresa, encontrava a tal caixa faladora no bolso do casaco de lã. De cada vez, espantado por ter ali tão bizarro objeto e atraído pelo botão vermelho, lá ouvia a voz dizer-lhe:
O teu nome é Pranas K. Nasceste no ano de… na cidade de… e o teu objetivo é encontrá-la, encontrar Morta.
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Pranas estranhou a demora de Morta. A gare estava mergulhada na penumbra da noite tardia. Desde que a crise financeira se instalara no país, a maioria da iluminação pública era cortada pelos serviços municipais às dez da noite. O chão tremeu, sinal de que o comboio se aproximava, e, com ele, ressurgiram as memórias dos anos passados a conduzir aqueles mastodontes de ferro, unindo o porto à refinaria. A locomotiva parou ao mesmo tempo que Pranas sentiu na boca o sabor amargo da solidão dessa vida sem altos nem baixos, mais monótona do que uma planície lunar. Reconheceu Albinas, um antigo colega, vinte anos mais novo, que conseguiu, graças a certos favores, dar o salto para a linha de longo curso que unia a sua cidade à capital. Pranas fingiu não o ver. Falar-lhe-ia de quê? Dos dias vazios da reforma? Daquilo que não conseguia comprar por causa da miséria da pensão que recebia? Evitando uma humilhação que existia apenas na sua cabeça, dirigiu-se para a porta da carruagem três, aquela que Morta costumava utilizar quando ia visitar a filha à capital.
As portas abriram-se e ninguém saiu. Os passageiros continuaram sentados, olhando em frente como se vissem uma televisão invisível.
Pranas identificou a mulher junto à janela. Bateu com os nós dos dedos no vidro e a esposa girou a cabeça na sua direção. Ele sorriu. Após mais de quarenta anos de um casamento adolescente, a visão da mulher ainda lhe incendiava o peito. O seu sorriso, porém, desfez-se quando lhe viu uma sombra nos olhos azuis. Morta encarou-o como se fitasse o vazio.
Aquele momento marcara o início de tudo.
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O teu nome é Pranas K. Nasceste no ano de… na cidade de… e o teu objetivo é encontrá-la, encontrar Morta. Vê a fotografia dela que está na mochila, dentro de um caderno com endereços e um mapa. Verifica qual é o próximo local e dirigi-te para essa morada. Executa tudo rapidamente que daqui a pouco já não te lembras de nada.
A gravação calou-se e Pranas parou no meio da praça. As luvas dificultavam-lhe o manuseamento do caderno e deixou cair a fotografia no meio da neve. O rosto da mulher era luminoso. A boca aberta, como quando a surpresa e a felicidade se misturam, o cabelo dourado e os olhos cintilantes rivalizando com o dia de verão captado naquele instantâneo.
Morta.
Apanhou o retrato e nada sentiu ao ver a imagem daquela mulher alegre. Tentou repetir o nome, mas já o tinha esquecido. Virou a fotografia e leu com dificuldade o que estava escrito no verso:
Morta, aniversário dos seus cinquenta e cinco anos.
Entalou o retrato no meio do caderno e leu a lista de endereços. Os três primeiros estavam barrados. Verificou a quarta morada e localizou-a no mapa. Ficou espantado por saber nortear-se no meio daquelas linhas vermelhas e amarelas. Pareceu-lhe magia. Já não o sabia, mas, antes de trabalhar como maquinista no porto, fora motorista no exército, onde, por pouco, escapara à guerra nos confins do mundo. Ao volante do seu camião, jovem soldado, percorrera centenas de vezes aquelas longas avenidas que cortavam a planura da cidade em meia dúzia de eixos perpendiculares, unindo o porto à autoestrada, que, numa enorme reta, ia até à capital. A antiga sabedoria de motorista transformara-se em instinto. Guardou tudo na mochila e, como um autómato, abandonou a segurança da praça e infiltrou-se pela cidade adentro.
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Haviam passado setenta e duas horas desde os bizarros eventos ocorridos na gare.
O comboio dos esquecidos – assim titulara na primeira página o principal jornal do país, o Alvorada Nacional, poucas horas depois do incidente – tornara-se o centro das atenções. Na manhã seguinte, apenas os jornalistas, sempre em busca de fenómenos sensacionalistas, exploraram o caso; porém, ao fim dessa tarde, dada a multiplicação de ocorrências, um médico de uma cidade de província mencionou pela primeira vez a palavra epidemia, embora ninguém tivesse detetado vírus ou bactéria responsável por tal surto. Trinta e seis horas depois, esse médico, entretanto já olvidado de quem era, foi desacreditado por um governo em pânico, o mesmo que, perante dezenas de milhares de novos casos, anunciou, na manhã do segundo dia, o confinamento compulsivo dos saudáveis e o internamento dos doentes. No espaço de três dias, o país passou do ramerrão habitual das compras festivas em mercados iluminados para o total esvaziamento de ruas e escolas, bibliotecas e lojas.
Três dias antes, poucos minutos após a chegada do comboio à gare, Pranas levou Morta para casa. Ao longo da estirada de trinta minutos, ela nada disse, deixando-se arrastar como um cão obediente. Para Pranas, homem calado por natureza, o esforço para fazer conversa deixava-o exausto. Não percebia se aquilo era um mero amuo conjugal, um simples tratamento de silêncio, ou se, Deus o proibisse, se tratava de algo do foro médico, quiçá psiquiátrico.
O casal chegou à casa amarela onde viviam sem que ela tivesse aberto a boca. Talvez um sono retemperador, pensou Pranas, a traga à normalidade. E foram dormir.
Com o nascer do Sol, tudo voltara ao anormal. Preocupado, telefonou à filha, que lhe disse, a mãe anda meio esquisita, dá-lhe tempo e espaço, privacidade. Deixa-a respirar, pai, não sejas chatinho. Fora a derradeira vez que ouvira a voz aguda, como se estivesse sempre prestes a soltar um grito zangado, da única filha.
Pranas assim fez e deu-lhe tempo e espaço. Dedicou-se aos trabalhos que começara no sótão, revestindo o chão e as paredes de tacos e ripas de madeira, e transformou os corredores em autênticos estaleiros. Ele, homem pouco dado a leituras, rádios ou televisões, era capaz de se perder durante horas nos pensamentos e lembranças, cantarolando canções da juventude, quase sempre na língua da antiga potência invasora. Pranas, a bem dizer, era a viva personificação do ensimesmamento, traço da personalidade que lhe permitiu deixar a esposa recolhida na sua privacidade. Nem sequer a incomodou para se deitar na cama que partilhavam, dormindo no sótão. Adormecia por volta das dez da noite depois de terminar umas palavras cruzadas.
Sem embargo, Morta passou esse recolhimento debaixo dos lençóis, ora dormindo, ora fitando a parede ou o teto. Comia o que o marido lhe punha à frente e utilizava a casa de banho quando ele lhe conduzia o passo aquando das suas efémeras descidas ao rés-do chão. Ao fim do segundo dia, Pranas, com o estado de espírito já para além da preocupação e com o sótão rematado e envernizado, voltou a telefonar à filha. Ela não atendeu. Ele insistiu e, olhando pela janela, passou dez minutos com o aparelho já obsoleto colado à orelha, ouvindo o sinal de chamada. Notara que o bairro, periférico e sempre tolhido numa calma bucólica, fora tomado por um frenesi de sirenes. Se ele, em vez de se perder nos pensamentos, fosse homem de seguir as notícias, estaria decerto ao corrente dos motivos por detrás daquele festival de polícias e bombeiros, mas, sendo como era, um bicho do buraco, seria sempre o último a saber. Alturas havia em que, durante as raras reuniões de amigos da igreja, acolhia com admirada estupefação uma novidade velha de meses.
Após três tentativas, pousou o telefone no gancho e permitiu que a preocupação desse lugar ao medo. Imaginou-se no funeral da mulher e, de lágrimas nos olhos, resolveu telefonar para o hospital. Meia hora mais tarde, três homens mascarados apareceram-lhe à porta num tumulto de fim do mundo e levaram Morta.
Ele foi para dentro, dividido entre o alívio e a inquietude, e fez algo de uma enorme raridade: acendeu a velha televisão do tamanho de um armário e esperou pelas notícias do meio-dia.
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Pranas patinou por dezenas de ruas e ruelas sem compreender o que o incitava a seguir aquele e não outro caminho. Cruzou-se com homens e mulheres, uns caídos e semienterrados na neve, de olhos esbugalhados, um olhar não muito diferente daquele que exibiam quando estavam vivos, fitando, em ambas as circunstâncias, um vazio semelhante. Outros erravam sem destino, parando apenas quando lhes cheirava a comida, fosse no interior de um supermercado arrombado ou dentro de um caixote do lixo.
Por fim, o radar interno de Pranas conduziu-o a um enorme edifício cravejado de pequenas janelas circulares que mais pareciam buracos abertos por obuses. Aproximou-se do portão fechado a cadeado e encarou uma placa branca com letras vermelhas. Demorou algum tempo a decifrar o que lá estava escrito. Os sons silábicos foram-lhe chegando numa lentidão de onda lacustre.
Hospital Central.
Experimentou as mordidelas do frio no corpo e resguardou as mãos nos bolsos do casaco, descobrindo num deles uma pequena caixa preta com um botão vermelho.
O teu nome é Pranas K. Nasceste no ano de… na cidade de… e o teu objetivo é encontrá-la, encontrar Morta.
Escutou a lengalenga até ao fim, encantou-se pela primeira vez com o sorriso luminoso da mulher do retrato, seguiu as instruções e admirou-se por estar na morada referida no caderno, riscando-a com o lápis. Quem, imune à amnésia coletiva que havia varrido o mundo, lhe visse o semblante surpreendido, jamais acreditaria que Pranas executava pela milésima vez todas aquelas tarefas ordenadas por uma voz desconhecida. Guardou o caderno e a pequena caixa preta com o botão vermelho dentro da mochila e estudou a situação.
Encontrar Morta, pensou, ainda com o retrato na mão enquanto procurava pela melhor maneira de ultrapassar o portão trancado. O muro, apesar do arame farpado que o coroava, não lhe pareceu intransponível. Pranas guardou a fotografia no bolso e, não obstante a idade – ele continuava magro e atlético, nunca perdendo o corpo longilíneo do tempo em que jogara basquetebol na equipa do exército – saltou e ergueu-se à custa da força dos braços, sentindo-os fraquejar no momento crucial; porém, graças a um derradeiro esforço, evitou o arame e empoleirou-se no topo estreito daquela elevação de tijolos. Observou o interior, um extenso parque de estacionamento coberto por um metro de neve, deixando visível apenas metade dos automóveis. O manto branco estendia-se até às portas do hospital. Manteve-se no cimo do muro até esquecer o motivo que lá o levara, passando por mais um daqueles momentos de confusão em que uma neblina branca lhe toldava o juízo. O mundo girou, as nuvens baixas tornaram-se chão e a neve virou céu, e Pranas, antecipando-se ao desmaio iminente, deixou-se cair.
2. Morta
O corredor era extenso e chegava-se ao local de partida após quatro guinadas de noventa graus e longas demoras nas janelas redondas de onde se via a cidade do alto. Um mar de ruas desertas e telhados cinzentos. Durante vários dias, uma trintena de mulheres, a maioria vestindo uma bata esverdeada, circulava por ali como um rebanho de hamsters vagarosos, apenas parando quando encontravam algo de comer ou quando o cansaço as atirava para cima de uma das camas. Não se ouvia uma única voz, somente o som de um contínuo arrastar de pés. Nem num asilo para mudos o silêncio seria tão profundo. A única porta aberta permitindo sair do corredor dava para uma escadaria estreita mergulhada numa escuridão espessa como tinta. As mulheres, uma a uma, desceram-na sem nunca terem regressado àquele décimo terceiro e último andar. Umas ficaram pelos corredores inferiores, outras desembocaram no exterior soterrado pela neve, a maioria acabou no perpétuo purgatório dos lanços de escada. A última das mulheres do piso treze a vencer o medo – o mais primitivo dos instintos e impulso inconsciente que não precisa de memórias ou aprendizagens para levar um animal à ação – e a partir escadas abaixo, rumo ao desconhecido, fora Morta K.
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Já a noite invernal tinha caído quando o comboio partiu, três minutos depois das cinco da tarde. Demoraria seis horas a atravessar os trezentos quilómetros de florestas e lagos que a separavam do mar, seguindo quase sempre os meandros do maior rio do país. Morta espreguiçou-se e viu as luzes da grande cintura industrial da cidade desaparecerem pela janela, deixando o cheiro a carvão e a petróleo para trás. Havia uma semana que sentia os pulmões entupidos pela fuligem cuspida por aqueles milhares de chaminés. Abriu uma frincha da janela e inspirou o ar glacial da floresta, fechando-a apenas quando outro passageiro o exigiu num resmungo. Pensou na semana que passara e teve pena da filha que, no exíguo apartamento de paredes de papel onde vivia, não tinha outro remédio senão optar entre as fronteiras da hipotermia e a intoxicação provocada pela braseira.
Que vida dura, a dela, pensou.
Um trabalho ingrato na fábrica e uma filha doente em casa, o fruto de uma relação etílica com um desconhecido que nunca mais vira. Uma coisa de três minutos nas traseiras de um bar de baixa categoria e uma fanática recusa em fazer o necessário nos dealbares da gravidez levaram ao nascimento da sua neta, uma pobrezinha de rosto desfigurado e órgãos fora do sítio. Morta perdeu-se nas suas cogitações, atordoada pelos lentos balanceares do comboio. O deambular mental foi-se tornando menos lúcido e o sono chegou com patinhas de lã. Morta ouvia os barulhos, porém o seu corpo deixara de reagir aos estímulos exteriores. Sabia-se de boca escancarada, ressonando como um velho trator, mas não queria saber: aquele sono de viajante era mais do que necessário, após dias e noites mal dormidas, sempre atenta ao mínimo gemido da neta, uma menina de cinco anos, mas com corpo de bebé, mudando-lhe fraldas e tentando compreender o que lhe doía.
E o aperto que me esmaga o coração, confessava, de rosto lavado pelas lágrimas, às amigas da igreja, quando a vejo no hospital agarrada às máquinas?
Queria tanto esquecer, fazer da sua mente tábua rasa: a velhice que chegava, a perpétua tristeza da filha, o marido que se deixava andar, aquela eterna noite que era o inverno no país. E após horas a sonhar com essa imperiosa vontade de tudo esquecer, de limpar o mundo de qualquer traço de memória, acordou sem fazer a mínima ideia de onde estava.
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A escuridão queimava-lhe a pele como azeite a ferver e, a cada viragem, os seus pés deparavam-se com corpos deitados. Uns queixando-se com um grunhido quando Morta os pisava, e outros, duros e frios, mantendo-se calados mesmo quando ela tropeçava nas cabeças. Nenhuma das outras portas dando para os restantes andares estava aberta. Ao deparar-se com uma delas, encostava o ouvido à madeira e ouvia o mesmo roçagar pelo chão, as mesmas passadas sem destino. E cinco minutos bastaram para que aquelas trevas se tornassem na única coisa que conhecia, pois até a luminosidade baça do piso de onde vinha já esquecera. Desceu e desceu, tateando o vazio, cega da vista e da memória, degrau a degrau, patamar a patamar, e, enfim, no piso zero, encontrou uma porta secundária dando para a claridade filtrada pelas nuvens rasteiras e para o frio que quase vitrificava o ar. Examinou a paisagem branca, e o jardim depauperado, e os carros estacionados até ao muro, e o horizonte possível materializado num homem dependurado num grande muro.
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E dentro daquele comboio parado, toda a vontade lhe abandonara o corpo. Olhou o cais da gare iluminado por um lampião solitário e sentiu-se sonolenta, como se, apesar dos olhos que viam e das orelhas que ouviam, nadasse num mar de barbitúricos. Os doze passageiros sentados na carruagem também escrutinavam o mundo através do vidro, colados ao assento. Morta viu então surgir um rosto sorridente emoldurado por uma chapka e olhou através dele como se não o visse. O homem que lhe sorrira desapareceu para, segundos depois, surgir ao seu lado no interior do comboio.
– Como correu a viagem? – perguntou-lhe enquanto puxava uma mala do compartimento acima das suas cabeças.
Os ouvidos de Morta zuniram, e os olhos semicerraram-se, e a boca viu-se incapaz de largar um ai. O desconhecido continuou a falar, embora o seu semblante jovial se tenha deixado tomar pela rigidez do desconcerto. Agarrou-a pelo braço e conduziu-a para o cais, abandonando os outros passageiros que lá ficaram sentados de mãos pousadas no colo, fitando um ponto invisível, quietos como estátuas de sal.
Caminharam meia hora ao longo de uma estrada escura e escorregadia, ele falando do tempo e dos trabalhos que começara no sótão e arrastando a mala e a mulher de sentidos dormentes pelo gelo afora até chegarem a uma casa amarela. Entraram e, sem nunca se calar, ele conduziu-a ao quarto. Morta deitou-se e bebeu o que Pranas lhe deu.
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E assim passaram quase três dias. Pranas descia do sótão ao meio-dia e ao cair da noite. Alimentava-a às horas certas, como se obedecesse à posologia de um medicamento. Nem para comer a adorada sopa de beterraba ela mostrava ânimo. Capaz de encaixar com desarmante humildade a pior das sortes, afinal a isso fora acostumado desde tenra idade, não tivesse perdido o pai e a mãe no derradeiro massacre da guerra, Pranas começou por encarar aquela bizarra doença de Morta com a postura habitual: negando-a até ao limite, como o fizera daquela vez em que quase deixou gangrenar uma perna partida por se recusar a ir ao hospital. Só quando se imaginou sozinho na velhice, só quando se abalou pela perspetiva de enterrar a mulher no jazigo familiar, que já ostentava os seus dois nomes em letras douradas ia para dez anos, é que tomou a inevitável decisão.
Minutos mais tarde, Morta, tal como se deixara levar pelo marido da gare até casa, também se deixou levar pelos três homens mascarados para o Hospital Central.
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Ela viu o homem em cima do muro cair de bruços sobre o carro.
3. Pranas
As notícias do meio-dia duraram a tarde e a noite inteiras, só terminando de madrugada quando a emissão encerrou com a orgulhosa exibição da bandeira tricolor acompanhada pelos estridentes acordes do hino. Fora a última emissão e o derradeiro hino. Pranas levantou-se da poltrona com a cabeça pesada. Toda aquela catadupa de imagens – filas de pessoas amnésicas a serem empurradas para dentro de hospitais e cordões sanitários e militares equipados como se estivessem prestes a enfrentar uma guerra biológica – funcionou como se alguém lhe tivesse puxado o tapete debaixo dos pés.
Foi à cozinha e encheu um copo com vodka. Cinco gotas não matam ninguém. Vestiu o casaco e saiu para o pequeno jardim. Olhou para o lado de lá da vedação e viu um homem. Não reconheceu logo o vizinho, nunca o tinha visto sem a pesada armação dos óculos pousada no nariz adunco. Pranas levantou o copo num cumprimento e disse-lhe:
– Já viste, Antanas, agora estamos presos em casa, quarentena, dizem eles, vamos viver de pepinos em calda.
O olhar vazio do vizinho atravessou-o. Pranas recuou como um animal acossado e relembrou os avisos martelados nas notícias.
Mantenha a distância. Não troque olhares com um infetado. Isole-se.
Teve medo. Hesitou. E quando voltou a olhar para o lugar onde antes estava o vizinho, este tinha desaparecido. Entrou em casa, bebeu mais cinco gotas, fez um telefonema e deitou-se vestido na cama a pensar na própria cobardia. Sabia-se pusilânime, mas era raro admiti-lo, nem sequer a si próprio.
És um fraco.
As têmporas latejavam-lhe e só se acalmou graças ao cheiro da mulher impregnado na almofada. A última vez que Morta passara a noite no hospital fora no nascimento da filha.
Vai tudo correr bem.
Quando estava quase a cair no sono, ouviu uma sirene aproximar-se. A ambulância estacionou em frente à casa de Antanas. Fez por ignorar a culpa e revirou-se na cama. O odor de Morta aumentou de intensidade. Pranas teve receio de esquecê-la e pegou no retrato pousado na mesa de cabeceira. Contratara um profissional para fotografar Morta, uma prenda pelo seu quinquagésimo quinto aniversário. Ela estava feliz naquele dia de sol. Nunca chovia em julho. O medo de esquecê-la apertou-lhe o peito com mais vigor. Não se lembrava de quando o amor se transformara em dependência, embora desconfiasse que uma e outra coisa fossem da mesma essência.
Foi então que a ideia lhe surgiu do nada. Levantou-se num salto e foi à sala buscar um gravador, um caderno e um mapa.
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Pranas acordou com o cérebro vazio, sem qualquer lembrança de quem era ou de onde estava. Não se recordava de tal, mas ouvira nas notícias que, durante as primeiras quarenta e oito horas após a infeção, os doentes mergulhavam numa profunda letargia, uma espécie de estado comatoso, para ser exato.
Passado esse tempo, Pranas K., livre da apatia e tomado por um impulso animal, revirou os armários do avesso em busca de comida, engolindo, quase sem mastigar, dois potes caseiros de pepino em calda. Saciado, começou a percorrer as divisões da casa como um espeleólogo explorando uma gruta pela primeira vez. Nada lhe era familiar e assustou-se quando viu o seu reflexo no grande espelho onde Morta se costumava aprimorar antes de partirem para a missa das dez. Pranas não se reconheceu e não perdeu sequer um segundo a tentar perceber a origem daquele homem bidimensional que lhe aparecera do outro lado daquela bizarra janela. Enfim, encontrou a porta da rua e viu uma mochila pendurada na maçaneta.
Vê o que está no interior, leu escrito num bilhete colado com fita-cola.
Abriu-a e encontrou um caderno, um mapa e uma caixa preta com um botão vermelho.
O teu nome é Pranas K. Nasceste no ano de… na cidade de… e o teu objetivo é encontrá-la, encontrar Morta.
4. Morta
Morta viu o homem em cima do muro cair de bruços sobre um carro, levantando uma nuvem de neve, dir-se-ia um pacote de farinha rebentando no ar. O homem não se mexeu e Morta, guiada por uma força maior, como uma lua atraída por um gigante gasoso, caminhou naquela direção. A neve chegou-lhe à anca e começou a tiritar de frio. Subiu para cima do automóvel e ouviu a respiração pesada do homem vestido com um casaco de lã. Morta ajoelhou-se e começou a despi-lo. Tirou-lhe um braço da manga e virou-o de barriga para cima. Tinha o rosto coberto de sangue. Terminou a tarefa e vestiu o casaco que lhe ficava grande, tocando-lhe os tornozelos. Fechou os olhos, apreciando o calor, e ouviu o homem sussurrar:
– Morta, a minha mulher, ando à procura de Morta.
Ela levou a mão ao bolso e descobriu a fotografia de uma mulher loira, sorridente, com a cara iluminada pelo sol.
Morta, aniversário dos seus cinquenta e cinco anos, leu no verso.
O homem repetiu-se um par de vezes. Ela ignorou-o. Não o fez por mal, as coisas eram como eram. Guardou a fotografia no bolso, agarrou na mochila, pô-la ao ombro e partiu, largando o homem à sua sorte.
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Morta chegou à morada certa e esqueceu-se por que razão estava ali. Passaram uns minutos até redescobrir dentro do bolso a caixa preta com o botão vermelho.
O teu nome é Pranas K. Nasceste no ano de… na cidade de… e o teu objetivo é encontrá-la, encontrar Morta.
E foi assim que Morta continuou procurando por Morta.
Nuno nasceu em Matosinhos, estudou História e foi arqueólogo durante mais de uma década. Vive em Paris, onde é consultor editorial e divulgador da literatura lusófona na rádio e na imprensa escrita. Em 2014, foi finalista do Prémio LeYa. Publicou quatro romances: Zalatune (2021), O Homem Domesticado (2017) - cuja tradução será publicada em França em 2021 –, O Dia em Que o Sol Se Apagou (2015) e O Soldado Sabino (2012), obra traduzida e publicada em francês. É mentor deste projeto, juntamente com Gabriela Ruivo Trindade.
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