PAI,
Esta é uma carta que pergunta. Ela pergunta, antes de tudo, se você pode me escutar. É também uma carta cansada, que busca esperança, sua presença de novo no mundo, o seu abraço, sua força, aquela mesma que te fez assistir “Roda Viva” no Teatro Oficina no dia de sua alta do hospital, quando descobrimos que o câncer tinha voltado.
Você não imagina, pai, o que está acontecendo. Outro dia transferi mais dinheiro do que podia para o Teatro Oficina porque era como se fosse você transferindo. Está tudo parado, o artista da fome deixou de ser nome de um conto de Kafka. Aliás, talvez você imaginasse sim, você era infectologista, e como eu queria poder te ligar para perguntar se o que senti outro dia podia ser COVID, ou para te contar que o Jorge aprendeu a escrever o nome dele, e ele faz as letras de um jeito tão engraçado.
Você nos deixou em março de dois mil e dezenove, alguns dias antes de completar 66 anos. Vivenciamos sua morte, você sabe, e o que a antecedeu, com tristeza e amor, tristeza e amor que se potencializavam reciprocamente, quanto maior uma, maior também o outro. Lamentei muito sua partida, lamento ainda, mas, embora sinta diariamente sua falta ― é estranho dizer isso ―, eu agradeço que ela tenha acontecido naquele momento. Porque pudemos estar ao seu lado, nos despedir, cantar junto com você, escutar de perto seus últimos desejos, pudemos te escutar respirar e sorrir até o final.
As pessoas morrem tanto hoje, pai, morrem tanto, que a morte virou uma coisa banal. Três mil mortos no Brasil, só no Brasil, só no dia de ontem. Três mil famílias que perderam alguém de longe, sem poder dar as mãos a quem partia como fizemos com você.
Todos os dias.
Semana passada eu estava assistindo a uma série com o Eder e aparecia a informação de que, em 40 anos, o ETA matou mais de 800 pessoas. É tão pouco perto do que se morre todos os dias no Brasil de coronavírus. O Brasil de Bolsonaro. Morre-se de Bolsonaro no Brasil de coronavírus. É uma doença safada, você sabe, mas o idiota que nos desgoverna conseguiu nos colocar na contramão do mundo.
A gente já sabia que seria terrível, né, pai. Mas houve felicidade antes.Houve esperança, e fomos juntos votar no segundo turno logo depois que o seu transplante de medula tinha dado certo. Você estava fraco, mas feliz de ter sobrevivido; no primeiro turno você ainda estava internado, naquela ala de isolamento para que nenhum vírus ou bactéria chegasse até você enquanto sem defesa imunológica alguma. Essas palavras eram tão específicas antes, isolamento, vírus, defesa imunológica.
Tinha dado certo, e o fato de você poder votar no segundo turno parecia auspicioso. Mas a vida não tem o roteiro que queremos para ela.
Bolsonaro ganhou as eleições.
O linfoma voltou, menos de dois meses depois. Na posse dele, na nossa última viagem com você, seu último ano-novo, você já tinha voltado a sentir as dores, embora custássemos a acreditar.
Estamos vivendo a época do impossível, pai. Como eu queria que tudo fosse diferente, e que você pudesse me aconchegar no seu abraço, o abraço de um mundo que não mata tanta gente de idiotia todos os dias.
Se fecho os olhos, consigo te imaginar subindo a rampa do Teatro Oficina, todo mundo cantando Cordão. Enquanto eu puder cantar, enquanto eu puder sorrir.
Na.
Natália nasceu e vive em São Paulo. É escritora, médica psiquiatra pela Universidade Federal de São Paulo, mestre em psicologia e doutoranda em literatura pela Universidade de São Paulo. É autora de Desterros – histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017), acerca de seu trabalho de oito anos no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, da coletânea de contos Rachaduras (Quelônio, 2019), finalista do Prêmio Jabuti, e do romance Copo Vazio (Todavia).
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