AS PEGADAS DE JAMILA
A cabeça junto à raiz do problema. Em desânimo. Em escuridão.
Estado de alma.
Deixámos a cidade para trás. Escolhemos o campo para viver a felicidade. A simplicidade devia ter-nos conduzido lá.
E foi por pouco.
Estou sozinha, o Jaime não conseguiu voltar do Brasil. Os voos foram cancelados, as fronteiras estão controladas. Estamos destinados a viver o confinamento com o atlântico a atrapalhar.
A desgraça nunca se anuncia, atira logo a matar. Desta vez, acertou onde mais dói. Falhou por um triz. E, ainda assim, fez descer sobre mim um nevoeiro que talvez nunca desapareça.
A culpa é um sentimento que devora os humanos. Retira-lhes o sentimento de merecimento, a possibilidade de sorrir para dentro e para fora.
Era uma manhã como as outras, pela janela via-se a neve que ia até à última árvore. O branco a tomar conta de tudo, numa beleza traiçoeira. Sempre poderosa.
A natureza a mostrar-se como é. E nós sem fazer caso.
A minha filha Jamila tem quatro anos. Estamos as duas rodeadas de solidão.
Agora até parece um hábito, mas não era.
Encho-a de amor como posso. E sei que não é suficiente para a proteger.
Naquele dia tinha agendadas duas reuniões zoom onde devia propor as soluções para problemas complexos. A responsabilidade, esse monstro, era minha.
É muito difícil apresentar maravilhas com uma adorável criatura pequena à solta pela casa. Trepando, entediada. Voando, às vezes com a cabeça para o chão.
Os nossos olhos têm de ser como os daquelas figuras de pinturas de museu, que seguem o observador à medida que este avança, ou como os umbigos dos budas.
A escola, para onde íamos a pé, estava fechada. Não tinha com quem deixar a Jamila. O vizinho mais próximo estava a vinte quilómetros e eu não tinha carro.
O Estado do meu país tinha-me em boa conta, achou-me capaz de ser baby-sitter e engenheira de sistemas. Determinou que, estando em teletrabalho, não tinha perda de rendimento e podia muito bem tomar conta da minha prole que, afinal, nem isso chegava a ser: era só uma criança.
Tudo ao mesmo tempo: agora sem mãos, e agora só com estes olhos…
Mas o Estado do meu país não conhecia a Jamila. Não sabia do que ela é capaz…
Pelo canto do olho, vi-a brincar e descansei.
Embrenhei-me a explicar os prós e os contras daquela solução para o caso do nosso super-cliente. Mostrei o brilho daquele futuro que poderíamos criar e tudo o que íamos alcançar juntos.
Estava a correr bem.
Porém, quando olhei para o lado a Jamila não estava.
O espaço, subitamente, vazio de Jamila.
As crianças têm uma curiosidade infinita e seguem qualquer borboleta que esvoace perto do seu nariz.
A Agustina, gata da casa, decidiu aventurar-se lá fora…
A porta não estava trancada, no campo é raro estar.
Terminei abruptamente o zoom e saí para a neve.
As pegadas pequeninas a mostrar o caminho. A dar pistas e angústia.
O meu coração, louco.
As lágrimas a gelarem-me na cara.
E eu, miserável, asfixiada pela possibilidade de a ter perdido.
Algo em mim a sangrar sem se ver. Culpa, receio. Tudo.
O desespero a sair-me na voz que a chamou por entre o vento. Por entre o medo. Sempre o medo.
Jaaaaaaaamiiiiiiiiiiilllllllllaaaaaaaaaa!
Estava reduzida à maior insignificância.
E de repente quis mesmo ser nada. Deixar de ser. Desaparecer com ela.
Mas enterrei os pés na neve e continuei.
Tinha de a alcançar. De lhe apanhar a mão pequenina.
Jamila estava inanimada.
Uma boneca na neve.
Peguei nela ao colo e corri para dentro, aqueci-a com a parte de mim que ainda era quente e com tudo o que encontrei. Sobretudo com amor.
Chamei o INEM àquela parte remota do mundo. Sem saber quanto tempo demoraria.
Fiquei a olhá-la como se olha o fim da vida.
Mas, de outro lugar, Jamila foi voltando. Abrindo os olhos.
Todo o meu corpo contraído se foi soltando. Como se o alívio fosse mais leve que o ar e subisse acima de todas as coisas
Como se o jogo tivesse sido reiniciado e a barra de vida estivesse novamente intacta.
À espera do resto. Do que ainda faltava viver.
A minha voz tinha, de repente, uma felicidade intensa que vinha da sobrevivência deste pequeno ser.
Comecei a pensar em tudo o que tinha de mudar. O que queria mudar. Sem saber muito bem como. Ou o que fazer para isso.
Fiz vídeo chamada para o Jaime e deixei que, do outro lado do oceano, me confortasse com a voz compreensiva de sempre. A voz do homem que eu escolhi e que me ama. Permiti-me chorar no seu colo distante.
Mónia nasceu em Luanda e é jurista. Publicou, em 2013, o romance A Mulher do Primeiro-Ministro e o Camionista Filósofo. Em 2018 o conto A Festa foi um dos selecionados para a antologia do Centro de Estudos Mário Cláudio. Está representada na Antologia Minimalista (Minimalista, 2020). Pela Nova Mymosa publicou Uma Só Volta do Sol (2019) e Um Tigre à Porta da Sé (2020).
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