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Marta Barbosa Stephens

Atualizado: 28 de fev. de 2022





COMO ENTERREI MEU PAI




Para Jairo (em memória)




Na morte, entendimentos se transformam.


O que era defeito vira traço da personalidade. O defunto vira santo, diriam.


Mas o que escrevo aqui não me acometeu quando da morte do meu pai.


Meu. Pai.


Entendi por que admirá-lo muito antes daquele dia borrado de lágrimas.


Sete de junho daquele ano.


(Quando minha irmã me disse aos prantos por telefone “papai está morto”, eu respondi “não, claro que não está”. Só então entendi que não era uma pergunta).


Meu pai foi um sobrevivente.


Sobreviveu à pobreza na infância, ao álcool na maturidade (que matou tantos amigos), venceu as tentações dos caminhos mais curtos, sobreviveu a uma queda do telhado, às mazelas dos acampamentos do Sertão, a uma onça, ao medo de avião, dengue duas vezes.


Quando o pai dele morreu, ao receber a notícia pelo telefone da vizinha, recolheu-se em seu quarto, estirou o corpo na cama, ficou imóvel por horas. Quando perguntamos se não faria nada, ele disse que tinha feito tudo o que podia, já não havia razão para pressa.


Eram os insanos e machistas anos oitenta no Recife e meu pai dizia para as filhas pequenas: “estudem, trabalhem no que gostam, tenham sucesso e dinheiro e aí depois vocês compram um marido”. Risos. Recado entendido.


Sou fruto de um grande amor. Meu pai lavava pratos no acampamento, minha mãe espiava o moço bonito pelo cobogó da escola, onde era a menina-professora. Ele financiou um apartamento na vila de servidores públicos na capital e comprou toda a mobília com o dinheiro que ganhou no jogo do bicho. Ela se casou de vestido curto e brincos longos.


Meu pai viajava muito. Caçava fontes de água no subsolo do Sertão. Orgulho para ele era deixar uma vila esfomeada com a esperança de um poço de água cristalina. Outro orgulho era ter viajado por todos os estados do Nordeste e boa parte de Minas.


O caçador de água, meu pai.


Quando voltava, se conseguia economizar algum dinheiro das diárias, ele me comprava um disco: Cindy Lauper, Madonna, A-ha. Eu dançava escondida.


Meu pai nunca parou de recontar suas aventuras. Do que viu e ouviu. Das pessoas e dos bichos do Sertão. Foi natural que nascesse em mim a vontade de voar também. Quando saí de casa em definitivo, uma menina de vinte e um anos, ele não tentou me impedir. Sabia que era pai de passarinho.


À distância, a gente tinha nossos códigos. Começar uma mensagem com “tudo bem por aqui” era uma forma de admitir desde o princípio que não havia notícia ruim nas entrelinhas.


Quando a notícia foi ruim, ele se fez presente como um passe de mágica. Chegou com seu abraço avexado, uns tapinhas pesados nas minhas costas, mão cheia a segurar meu ombro. E foi, tantas vezes, o impulso que me ergueu das trevas.


(De onde meu pai tirava tanta positividade? Como podia ter tanta certeza sempre de que tudo tudo vai ficar bem?)


No íntimo, tudo ficar bem depende de coisas parcas e simples. Talvez, eu aprendi com ele.


Admiro-o por ter me criado tão livre de pensamento ao ponto de me permitir pensar diferente dele. Quanto grande há de ser o homem que permite à sua cria a independência de ser verdadeiramente outro.


Pai.


(A vida está sempre por um triz e o fim nunca fará sentido.)



 

Jornalista e crítica literária, com pós-graduação em edição na Universitat de Barcelona e mestrado em literatura pela PUC-SP. Nasceu no Recife e mora na Inglaterra. Publicou Voo luminoso de alma sonhadora (contos, 2013) e Desamores da portuguesa (romance, 2018). Participou da coletânea Feliz aniversário, Clarice (2020), e tem contos publicados em diversas antologias como “A mulher perdida em narrativas” (2017) e “Perdidas, histórias para crianças que não têm vez” (2017). Desamores da portuguesa, seu primeiro romance, é objeto de estudo da tese de pós-doutorado da pesquisadora e escritora Débora Mutter, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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