CANÇÃO PARA CARLOTA
Regresso do asilo fatigado. Um cão me espia do fundo de uma rua, tem o olhar de pedinte. Apresso-me nos passos. Assobio uma canção triste. Ele reaparece à frente. Os olhos transbordam lágrimas. Aproxima-se em hipotenusa, então vejo que sangra com a força da descarga. As moscas perseguiam-no agarradas à pata e o dorso queimado. Continuei a assobiar a canção e a caminhar, empurrando para fora de mim um animal asmático. O cão ficou ali, a lamber o chão, vendo-me ir embora.
Hoje estavam todos quietos, pálidos, perfilados em jeito de botões. O asilo está de luto. Morreu Carlota. Hoje ninguém comeu. As velhas estavam chorosas que dava dó. Os velhos lambiam as palmas das colheres, em soluços. O ar fúnebre e o odor da idade me perseguem. Ela disse-me, na última conversa, seu último desejo; voltar a menstruar. E não demorou; foi insolada. Homens em plásticos. Testes massivos no asilo. E sem hesitar, a Lota — era assim que as amigas a chamavam — entregou-se ao silenciamento, à eternidade de todas as coisas, à extinção. Passou pela aflição de quem procura por um braço e não acha. Faltava-lhe o ar para respirar. E levantava-se. E sentava-se. E rezava. Nos últimos momentos. Não pude dar um último abraço. O abraço devia também ser coisa dos que se vão. Aos mortos não se devia tirar o direito ao abraço.
No televisor passava No Woman, No Cry, de Bob Marley. Os outros velhos, dispersos em sementeira, rezavam em tom de desespero, as vozes chocavam-se no ar. Eu, sentado, vendo No Woman, No Cry. Tremiam-me as mãos. E não sabia que doença era. Brilhavam-me os olhos. E já sabia de tudo. Tudo havia chegado ao fim para Lota.
Vimos, ao final, o corpo embrulhado em capulana axadrezada e o carro aos solavancos a deixar o asilo, enquanto soava o coro de Bob e o alarido dos idosos era uma mistura de instrumentos de tristeza.
Quando entrei pela porta, a minha mulher reparou-me com desdenho. Ou medo. Não sei. Nunca sei. «Estás como uma mosca a fugir de si». E tudo passou como vento numa circunscrição errada. Entrei para a quarto, pendurei a máscara e deitei-me na cama, sujo. Olhei o tecto. As lembranças da Carlota atravessaram-me, atrozes. Chorei. Comecei por soluçar. Daí a minha mulher entrou e abraçou-me, apertando-me do mesmo modo que se apertam as coisas que não são de vidro nem de pedra. Deixei para o chão o peso do mundo. Chorei. E repetia «Carlota», como quem faz uma oração. O rádio sobre a cabeceira falava de números. Novos contágios. Vacina. Máscara. Imunização. Emergência. Conspiração...
Água cai. E assobio a mesma canção. Demoro-me ensaboado. Depois sento-me no chão, a lembrar-me novamente da velha a falar coisas felizes. A pôr os outros a rir. Mas também pesava o ar gélido da morte, a atormentar-me as articulações.
Bolas de calor a rebentar no ar do Verão. É noite, eu e a minha mulher, deitados na cama, nus, assobiamos a canção triste, continuamente, em coro, para entregar com dignidade o corpo que partiu.
Mélio é autor de livros de ficção narrativa e orienta oficinas de publicação de livros. Publicou dois livros de contos: «a engenharia da morte» (Edição independente, 2020) e «O Voo dos Fantasmas» (Ethale Publishing, 2018). É Prémio Literário INCM/ Eugénio Lisboa 2020 com o romance «Marizza». Em 2019 foi finalista do Prémio 10 de Novembro com o livro inédito «Outro Dia a Nuvem Evapora» (contos) e foi prémio de letras de música SensaSons, em 2012. É colaborador permanente da Revista Literatas e membro do Movimento Literário Kuphaluxa desde 2013.
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