INTERNET
Num outro dia que não hoje, apanhei o barco em Belém e fui a Porto Brandão sentir o cheiro do mar chocalhado e o que sobrava de mais qualquer coisa.
Das janelas que vi à chegada saltavam alumínios e música pimba.
Nas vielas, um saxofonista com chapéu de aba larga a resgatar umas notas enquanto chovia… Nah! isto já sou eu a inventar, vi num filme a preto e branco na Netflix.
Mas cheirava a sardinha assada e havia restos de redes, cortiça e anzóis.
Um velho de beata na boca e pele tisnada pelo sol remendava as artes.
O trote dos cavalos fez-se ouvir num Honda Civic artilhado.
O posto da GNR fica já ali em cima.
Roubaram-lhe alguma coisa?
Para além da alma e de uns versos, a orla marítima.
Ecoa uma voz átona na pradaria dos filmes.
Sonhos e ilusões sem passar da cepa torta.
Gosto de tortas e fios de ovos.
“Fais attention Michel, tu vas tomber”, respondeu o emigra.
A marinha portuguesa não tem combustível para os submarinos.
Dignidade ao fundo! Três tiros na paciência do tuga.
Amanhã joga o Benfica, hoje há incêndios, anuncia a CM TV.
Logo tenho que ir ao Pingo Doce fazer as compras.
Gosto de Rosé e pistachios.
Fiquei sem internet em casa…
OUTRO LUGAR
Só percebemos que tínhamos bebido demasiado quando vimos o chão muito próximo.
No desequilíbrio germinou o amor e o desejo, dois estranhos afogados na rotina.
Nos lençóis, marcas do delito conjugal por onde saiu o diálogo e os campos a florir num verso de Rimbaud.
Vistos do retrovisor, os finais de tarde são genéricos de filmes que acabam bem e onde, à distância, percebo que só em ti há outro lugar.
POETAS
E o que havia de casas ao longe…
Com as pedras e buracos a tomar conta do que sobrava da antiga estrada romana, ele dava pequenos saltos para se desviar de umas, sacrificando os joanetes noutras com as botas novas já a esgaçar.
Um pouco mais abaixo, numa depressão do terreno, um carreiro de cabras que levava a uma pequena casa de janelas de madeira, por onde passava uma luz ténue e um tímido rumor de vozes. Mais uns passos e bateu à porta. Lá dentro, uma pequena multidão espalhada pelo chão e por algumas cadeiras e sofás em fim de linha virou-se para ver o desconhecido, até que um homem curvado, com o rosto iluminado por uma vela, veio recebê-lo de braços abertos e disse-lhe num tom sério:
– O senhor não sabe o quanto precisamos de poetas agora…
ESTUÁRIO
O estuário está seco e eu estou ansioso em velocímetros de extermínio, prazer no intervalo entre estações, de comboio, claro está.
Um abajur de lua envelhecida e um amante volúvel em urgência inquieta, na alvorada de falsos poemas, trabalha em metalurgia pesada com palavras moldadas no ferro. Para trás a doce apatia.
Perecível marinheiro na soleira da raiva, mexe-se em instante pecado.
A véspera do Natal é sagrada, lembro-me disso em 1961, o amor de mãe não cumprimenta a arritmia da Guiné e o Spínola bebeu champanhe do monóculo, refugiado no seu casulo a finalizar um discurso na derradeira demora.
Numa falência de gestos, enquanto o porteiro comia nêsperas com sofreguidão, deu-lhe uma dentada na pele postiça, no tempo do café ao postigo, pós traumático e pós moderno. No deserto não chove.
A noite caiu súbita, metade de mim adormeceu, guardando-nos na algibeira de quem mais amo, sei lá eu quem mais amo. Talvez num poema de insónia ou na companhia do Dostoyevsky.
No porto de abrigo os sôfregos redimem os excluídos em moldes de gesso.
Luís Bento desenvolve, actualmente, a actividade de ghost-writing e gere o blog bento vai pra dentro, onde publica textos de prosa ligados à crítica de costumes, reflectindo sobre a sociedade portuguesa contemporânea. Doutorando em Ciências da Comunicação na FCSH NOVA, participou em diversas coletâneas de poesia e conto. Publicou pela editora NOVA mimosa o livro de poesia Vertigens e, no Brasil, o livro Lusitânia Online. Foi distinguido com o Prémio Novos Talentos FNAC da Literatura 2012, Prémio Eça Agora do jornal Expresso, Poesia da Vila de Fânzeres 2015 e 2018, Prémio de Literatura Lions 2017 na categoria de romance com o livro Psicopatia das Pessoas de Bem. O conto A Pintora em Festa foi selecionado em 2018 para a terceira antologia de contos do Centro Mário Cláudio.
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