naquela tarde azul
confinada.
(que dia mesmo?)
sinto falta de minha cidade.
das ruas de minha cidade
sinto falta.
sinto falta dos parques de minha cidade,
de seus teatros,
seus cinemas.
do ócio de seus habitantes sinto falta
e de suas boas maneiras constrangidas
pelos vidros de um vagão de metrô.
de meus vizinhos sinto falta,
sinto falta da leveza
com que meus estudantes encaram o futuro
pelos seus celulares,
sem futuro.
sinto falta de abraçar amigos,
de acariciar um cão,
de meus familiares.
hoje sinto falta de mim!
pelas ruas caminho
carregando, saudosamente, minhas ausências.
com meus companheiros caminho.
sem nada dizer,
nada a fazer.
apenas caminhamos
distantes uns dos outros
enquanto uma abelha pousa na mesa da varanda,
golfinhos nadam pelas praias da Sardenha.
pelas Champs-Elyséesdescem, elegantemente, raposas
ouvindo pássaros cantarem.
do alto de seus postes cantam alto,
cantam cada vez mais alto,
um canto estridente
conosco preocupados
:nós,
os novos enjaulados.
banido de mim
(: pelo que perdura)
de mim já se cansaram os espelhos
que pelo teto rebatem
este canto solitário.
no dia a dia
das horas vazias
me machucam as paredes mofadas,
pálidos vultos das palavras entendiadas.
e se meus sonhos bumerangues ainda arremesso
é contra mim que os lanço,
contra este eco
silencioso
e oco
que os móveis atravessa,
ao se espatifar pelas quinas
da casa egressa.
diante do fracasso de nossa humanidade
acordar tornou-se o grande desafio
:120 batidas por minuto
e nenhuma para alojar este meu inxílio.
(Do livro "Diários em mar aberto", Folhas de Relva, 2021)
Leonardo Tonus é professor de literatura brasileira na Universidade da Sorbonne (França). Em 2015, foi nomeado curador do Salon du Livre de Paris pelo Centre National du Livre e, em 2016, organizou a exposição «Oswald de Andrade: passeur anthropophage» no Centre Georges Pompidou. Condecorado Chevalier das Palmas Acadêmicas (2014) e Chevalier das Artes e das Letras (2015), ele publicou diversos artigos acadêmicos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou a publicação de vários ensaios e antologias literárias.É autor de duas coletâneas de poesia: Agora Vai Ser Assim (Nós, 2018) e Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019).
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