A COR DO ESPECTRO
– Que dia é hoje?
São 11h da manhã, e o dia parece ter o mesmo ardor de sempre. O sol dói até à costela, desapareceu o lado direito que escava a serenidade da respiração.
O dedo maior inchou ou será a retina puxada pelo vento da janela?
– Penso: está um dia forte hoje. Os pássaros desistiram da rua.
Viro a cabeça para pensar outra coisa. – Estou demasiado comprido neste quarto.
Percebo que há mãos em mim ao tocar no cabo.
Meu corpo está longo e sem sustentação. O som que havia ficou barulhento. As imagens vão e vêm dentro da cabeça como se me quisessem dizer sobre a água. O resto são enganos do esquecimento.
Para chegar à cozinha tenho de arrastar um pé e um braço por baixo, ainda não sei reutilizar o outro pé e o outro braço pesam. Pesam mais que as pálpebras enfrentando o sol.
Hoje é o último dia que vejo a faca com os olhos da cabeça. As cores vão ao fio, fino recto, desfocado como o mar para quem procura horizontes.
Devo rapidamente guardar a faca no lugar das memórias, apagar o aniversário de há um ano ou o primeiro amor. A faca. É imperiosa. Tenho que tê-la para não deixar que me assaltem o tédio e o desespero. A faca ruge nomes, aponta nomes. Insinua sobre Deus e a misericórdia de estar vivo.
Ontem pude ver a maçã encostada ao copo. Não era mistura. Era verde e laranja ao mesmo tempo.
O verde caía aos prantos aguarelado, o laranja estava fixo ao redor da minha dor. Era um abismo fundo…
O som acompanha a visão. Quando o prato despencou, o barulho aguarelou. É incrível como o corpo anda acompanhado da roupa, quando a tiro, a retina sabe que preciso da visão de dentro. Faz nuvem de cima como se eu fosse chover: não lágrimas, essas seriam palpáveis.
Do chão sinto as cores.
Há uma transparência que me reduz ao que me mandou ser. Vejo luz clara e um desenho grande de formas arredondadas.
Trazem um novo carácter ao chão: algum magnetismo que liga ao coração. Essa cratera miúda vulcaniza a areia, arrisca riscando os olhos desacordados.
– Gosto dessas despedidas afogadas.
Bate na minha cabeça o pensamento irritante bate com violência.
– Estou com fome.
Encosto-me à parede:
Irónico é ter rosto e nunca vê-lo. Será? Julgo eu, irónico é ter olhos e não ver adiante – não ver o dia que segue – não seguir o dia.
Durmo de costas deitadas porque de costas invertidas esqueço-me dos traços redondos. E preciso deles amanhã.
A mancha escapa das sujeições humanas, aparece por baixo e nas paredes como um carimbo no dia de sol em que os olhos imitam a luz. – O que pode acontecer se enfrentar o sol? As forças da minha coragem não suportam calor. Já dizia o meu tio paterno, coragem é mistura de temperatura e tempestade. Oh tão filosófico que não afundo nessa ida. A mancha faz perseguições infundadas como se lhe devesse a sina.
Só me é permitido sair para o quintal: – diz o decreto.
O sol ensina tirando o sítio imaterial da luz. Para olhar, o corpo tem que estar dentro da penumbra: apoteose dos estados de graça. É um exercício que se faz obra – destrói o corpo para arrancar as marcas.
Queria saber se há decretos capazes de quebrar a luz, quando aproximei à estrada pus a mão no buraco da vedação de caniço. Senti um carro passar, no ar uma voz confusa e imperativa. – “ Quero txilar*. Se tiveres medo fica.”
Não era o medo que estava a ser arrancado mas a despedida de uma outra limitação que se fazia no tempo. Ele diz: “se tiveres medo fica”, enquanto isso caminha para o lugar onde não quer.
Não havia mais gente na rua. Na última casa contada da esquerda para direita a placa subescreve o nome: Rua das Florestas. Só havia ali uma árvore seca que já não podia cantar. A língua das árvores são as folhas. Folhas são árvores na parte direita da criação.
Na mão e no desespero consumidor de ser gente por fora e por dentro, ascendo a imensidão com uma folha seca. Tenho medo de perder a inocência.
– Que manchas são essas?
Perguntas em cima de pensamentos. Quase os pensamentos caíam com o peso das perguntas. As perguntas tão densas por causa da questão só podiam descansar nas manchas. Elas se tornavam manchas. As perguntas adoecem. As perguntas têm a dor da voz. Por isso são perigosas.
Mais perigosas que as manchas.
As manchas estendidas por cima das perguntas são leves quase são claras. Quase não existem.
*Tchilar- desfrutar calmamente, divertir-se, curtir, descansar, relaxar.
Calão moçambicano.
pleura
1.
couraças abertas no primeiro do último século. órgão cimentado rubro. como no princípio: a dor era parte inferior. criaram um nome para tapar os buracos: chamaram-no coração. veio o tempo que é enganador. soprou sob os rostos das mulheres primeiro: fez delas coisas impraticáveis. e depois foi no olho esquerdo dos homens: os fez secretos. foi para as crianças criou a eternidade dentro.
o coração verga – disse o X. era preciso um órgão que fosse seguro. atento aos delírios da visão.
2.
olharam-se: os únicos feitos para a sorte. caminharam endireitados sem saber onde se tinham escondido os ouvidos. os pés alados sofreram a pressa do sopro vindo das pedras. – para que servem os dedos? o mundo é um espelho centrado, ofusca as mãos.
(uma voz diz):
entras na porta transfigurada, força vulcânica. pulmões no clarão agudo da morte.
entras na destreza das coisas com as glândulas por fora: invasão surda.
imóvel. entras na carne da razão com a luz apagada.
sabes e sabes que a luz apagada é a mais acesa. pela pálpebra entras no interior do redemoinho ou na ferida hermética.
3.
foi naquele dia em que o céu caiu para receber o poema da ditadura. as vozes dos homens amanheceram, quem podia cantar cantou. continuam eles à procura do órgão. – façam o que quiserem, dei-vos a liberdade.
os cegos inundaram as vísceras. os surdos enlouqueceram.
o mistério deambula no órgão primário. ossos do órgão podem se ver no firmamento.
4.
o mundo faz barulho à procura desse animal. ele que sobe e desce nas alturas supostas pelas grandes tempestades. deus vê as caras brutas dos sentimentos, perdoa e continua… o animal geme de fome. na nuca tem água violenta. sede mais antiga que o corpo com todas distâncias da terra. esse animal universal concentrado na insónia, arrasta para fora a estação circular das poças. veda a treva e a luz no mesmo saco. belo clarão o que se faz por cima das entoações secretas.
5.
uma fotografia guiada por uma criança, – dizem a única que pode ver o animal:
“era uma árvore rosada, com ramos magros altos oblíquos, em cada ramo havia um livro fechado na parte superior e noutros menores livros abertos. dificultavam o tórax, traziam abelhas nas flores rasas. como a árvore tinha olhos, o peso não se aguentava sob as pálpebras. por isso surgiram as membranas revestidas de leveza, pareciam esponjas. pareciam algodões.”
Hirondina nasceu em Maputo, Moçambique. Membro da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). Autora de Os Ângulos da Casa, prefaciado por Mia Couto, edição Fundação Fernando Leite Couto, 2016. Tem participado em revistas, jornais, blogs, antologias, festivais, colóquios, nacionais e internacionais. Co-redatora da revista portuguesa inComunidade, tem um projeto de divulgação de textos e conversas com autores lusófonos na plataforma Mbenga de Moçambique. É colunista da revista galega Palavra Comum, onde escreve ensaios sobre a arte da escrita.
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