REGISTRO DE UM MUNDO IMPENSADO
ACESSO AUTORIZADO: às pessoas que gostam de ler e de escrever e/ou com o espírito sensível. PONTO NO MAPA: extremo sul, paralelo 30. HORÁRIO: por volta das dez da manhã. TEMPO: de confinamento, de pensar sobre o antes, o agora e o depois e de poemas.
PRIMEIRAS SEMANAS – Wislawa Szymborska e Celso Gutfreind:
Ela: “o tempo (capítulo dois) / tem direito de se meter / em tudo, coisa boa ou má”. Ele: “abre-se o futuro / no tempo em que o presente / produz o seu passado”. Está bem, isolamento social. Take your time. A casa é sua, o inesperado acontece, e eu preciso apenas de água e comida, dos livros na estante e da internet funcionando. Deveria dizer também de alguém que me ame. Dentro das horas e entre algumas paredes. Minimizaria os meus excessos. Digo muito eu existo porque me vivo. Acabo por esquecer de que nada, nenhum sentido, substitui o da presença e de que, cedo ou tarde, ela marca buracos. Portanto, mentalizo: dê mais atenção ao dia de hoje, por favor.
SEMANAS SEGUINTES – Micheliny Verunschk e Iacyr Anderson de Freitas:
Ela: “varrer o dia de ontem / que ainda resta pela sala, / o dia que persiste, / quase invisível / pelo chão / nos objetos / sobre os móveis da sala. / Varrer amanhã / o pó de hoje”. Ele: “Tudo tem seu tempo / quer dizer / quase tudo”. Sim, camadas de poeira caçam os minutos e se expandem. Já eu deixo para dar corda no relógio sempre depois. Na sacada, as plantas me imitam, as frágeis sequer fazem fotossíntese. E as palavras, as que sempre estiveram na ponta da língua, por falta de ouvidos e o pouco uso das minhas cordas vocais, começam a se guardar dentro do silêncio. Tenho usado demais os dedos. Digito mensagens, recebo mensagens. Vou vivendo de emoticons. E isso não é bom. Para nada. Pode parar, alguém deveria me dizer. O meu vizinho, mas, pela janela da área de serviço, vejo suas piores condições. Quem sabe eu digo algo a ele?
ÚLTIMAS SEMANAS – Sophia de Mello Breyner Andresen e T. S. Eliot:
Ela: “Caminho nos caminhos onde o tempo / como um monstro a si própria devora”. Ele: “O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. / Se todo o tempo é eternamente presente / Todo o tempo é irredimível”. Acordei de um pesadelo faz pouco. Um dedo apontava para o meu rosto e dizia: “sonhe que não é preciso respirar, sonhe que não é mais para sonhar e anote em um bloco a sua lista de culpas.” De que culpas? Ora bolas! Não seria mais justa uma lista de desgostos? Sei lá. Sigo agilizando a segunda-feira, mesmo que hoje seja domingo. A quarentena caiu sobre mim em pleno dia. Terá de ir embora sem ter me anoitecido.
Brasileira, mora em Porto Alegre. O seu interesse por literatura, despertado na infância, a levou a cursar a Oficina de Criação Literária do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, na PUC/RS, e a frequentar os grupos de produção e de leitura crítica da professora Lea Masina. Em 2013, publicou o seu primeiro romance: “A condição indestrutível de ter sido”. De lá para cá, participou de antologias e organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia “Uns e outros”. É coautora na novela “Bem que eu gostaria de saber o que é o amor”, publicada em 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt. E acaba de lançar o seu segundo romance “Bonequinha de Lixo”.
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