LÍNGUA LITERÁRIA, ESTILO, CORREÇÃO E O PROFESSOR INGLÊS
O professor da London School of Economics até agora não deve ter entendido. Eu fora ao Museu Nacional, magnífica instituição da UFRJ na imperial Quinta da Boavista, no bairro de São Cristóvão, para uma conferência sobre a interpretação do conceito de correção gramatical nas línguas indígenas. O professor inglês lia no power point o texto em língua portuguesa, num português carregado, mas corretíssimo. Esmerava-se nas frases, pronunciando uma por uma devagar, a pontuação indicando a musicalidade exigida, com entonação algo exagerada. Um pontinho vermelho nas linhas na tela do power point saído do pequeno aparelho manejado pelo professor acompanhava a leitura.
A conferência durou pouco. Um aluno do fundo do auditório gritou: Professor, o senhor acha que a gente não sabe ler? A gargalhada geral deixou o conferencista zonzo. Seguiram-se discussões levantadas em socorro do mestre por pesquisadores da casa. O Professor José Carlos de Azeredo, em palestra na véspera na UERJ, palestra elucidativa – aliás, como sempre são as proferidas pelo genial professor de português – relembrara ter a passagem do Império para a República interrompido, de alguma maneira, a tendência do nosso Romantismo de valorizar a variante brasileira da língua portuguesa – José de Alencar é o grande exemplo. José Carlos estava na plateia do Museu Nacional e tentou, também, ajudar o conferencista inglês, repetindo esses trechos da sua palestra do dia anterior. Com efeito, Machado de Assis, o mais importante romancista brasileiro, já no Realismo, capricha no emprego culto da língua escrita, apesar de "não confundir qualidade literária com ornamentação retórica do discurso e linguagem literária com conservadorismo gramatical". Na palestra do Azeredo ponderei que, na literatura – lembrando das lições de Meschonnic na sua obra "Poética" –, é a obra que engendra o estilo e não o estilo a obra. Sem descuidar da noção da multiplicidade de sujeitos, do Bakhtin, alguém atalhou na ocasião. Reproduzi esse mesmo raciocínio para atenuar o clima pesado, visível no semblante do colega britânico. Aliás, o professor inglês dissertava se referindo bastante a Bakhtin. Mas a reunião no Museu Nacional estava desbussolada para sempre. A curiosidade em saber como se dá o critério de adequação gramatical nas línguas ágrafas do Brasil ficava para outra vez. Cumprimentei o conferencista vindo especialmente de Londres e pedi-lhe desculpas pelo incidente constrangedor. Ele, sorrindo e me apertando o antebraço, só disse, Molto Bello. Não sei se foi ironia inglesa ou não.
Relembrei esse episódio há pouco, já rabiscado em algum lugar, aqui confinado e temeroso do covid traiçoeiro. O Museu Imperial desfez-se num incêndio há alguns anos e o professor inglês se aposentou após uma grave infecção pulmonar causada pelo vírus (mas está bem, segundo e-mail dele recebido ontem). José Carlos continua produzindo como nunca. Consegui equacionar o critério de correção na variante brasileira da língua portuguesa, acompanho a recente e justa luta protagonizada por alunos de Curitiba contra o racismo embutido nas expressões em português, tais Criado mudo, Mulata, Nhaca, Nega Maluca, A coisa tá preta e Meia Tigela (o projeto se chama “Não fale a Língua do Racismo"), mas o critério de correção nas línguas ágrafas do Brasil continua em aberto.
Romancista premiado e contista, Godofredo conta com 15 livros publicados. Tem três romances publicados na França, com grande repercussão nos jornais Le Figaro e Le Monde e estudados nas universidades francesas. É professor de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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