MUTANTES
Perguntar ‘quem sou’ é uma pergunta de escravo;
perguntar ‘quem me chama’ é uma pergunta de homem livre.
Maria Gabriela Llansol
Não foi o único caso que espantou o país, mas o que me comoveu. Tudo começou com o desaparecimento da sua certidão de nascimento. Revirou caixas e gavetas sem encontrar pista. Nenhum cartório acusou o possível registro nos anos prováveis de seu nascimento. Ficou em dúvida se adotava a alcunha de Violeta, a cor mais viva; ou Amora, o feminino do verbo amar. No sorteio improvisado, assim que viu a letra V surgir dentro do papel amassado, soube como se chamaria. A sorte se lançava, não questionou, não reivindicou o segundo lance.
Vizinhos asseguraram que ela trabalhava, há décadas, no departamento financeiro de uma empresa aérea. Violeta sequer encontrou a carteira de trabalho para testemunhar a verdade. E ninguém questionou as faltas, quando ela bateu o cartão de ponto numa segunda-feira. Adaptou-se como pôde à filosofia da velha empresa, percebeu-se expert no uso da calculadora multifuncional. O Diretor Geral, um sujeito que passava boa parte do tempo fazendo palavras cruzadas em japonês [um misto de Roberto Bolaño com Fito Páez] elogiou, diversas vezes, o seu desempenho.
O humor de Violeta afunilava, ela não dormia bem, a insônia retirava-lhe a possibilidade de que algo fosse pronunciado nos sonhos. Os amigos se revezavam na tentativa de arrancá-la do estado de apatia. Leila Diniz apareceu com o sol matinal, trazendo, debaixo do braço, uma baguete italiana. Celebrariam a vida com café, pão fresco, manteiga e afeto. Leila pretendia sacudir o cérebro de Violeta com afáveis recordações: noutras épocas, Violeta, vivemos grandes emoções. Eu falava o que queria, lixava-me para a moral e os bons costumes… deixávamos descobertos os seios, transávamos de manhã, tarde e noite. As únicas coisas que eu deveria evitar, revelou-me uma cartomante, seria uma viagem para a Austrália e manga com leite. Já o Prince da Vila Mariana levou-a para o coral do bairro com a expectativa de que a ressonância musical, de várias vozes, a resgatasse de sua errância no universo evocativo das interjeições. Da boca de Violeta, a todo instante: Hein? Hã? Hum! Ora! Ui! Arre! Xi! Ó! Pumba!
A réstia de memória chegava a ela por acordes turbulentos.
O caso permaneceu por semanas na mídia. O país, acostumado a se fragmentar em polêmicas e histórias fantasiosas, lançava-se num rol de conjecturas. Houve diversas teorias conspiratórias, três delas merecem destaque:
I – Trata-se de uma criminosa, procurada pela INTERPOL pelos delitos cometidos. O mais alegórico se deu no Panamá: mulher ganha bolada num golpe cibernético, surrupiando dados sigilosos dos computadores de uma multinacional. Pediu resgate bilionário em bitcoins. Finge sofrer de amnésia retrógada para ser considerada inimputável, se indiciada.
II – Violeta foi a cobaia de um extravagante experimento da área de segurança dos Estados Unidos: avançam numa pesquisa científica sobre a captura de dados dos cérebros de pessoas. O alto investimento tem como objetivos: preservar e domesticar a vida mental de seus inimigos, reduzir os custos de Guantánamo e de outros presídios. Uma releitura de Laranja Mecânica.
III – Cientistas brasileiros consideram a perda da identidade como uma sequela rara de infectados pelo coronavírus em sua forma primitiva. Os estudos vingaram após uma postagem (que viralizou nas redes sociais) de uma mulher (com características físicas da tal “Violeta”) no mercado de Wuhan chupando asinhas de morcego temperadas no leite de coco com especiarias locais.
Violeta, cansada de tanta babaquice e de tanta caretice, não se moldava: oh, mundo chato! Oh, vida besta! Sem encontrar uma saída para o seu desassossego, esquivava-se, como podia, dos preceitos sociais. Redesenhou, às pressas, a sua biografia, como uma sonâmbula em noite alta ou uma personagem que se infiltra no romance à revelia do autor. Os melhores momentos, os mais leves e divertidos, passou junto à Leila Diniz. Perambulavam por São Paulo, um chope na Augusta, uma empanada na Vila Madalena, um almoço grego no Brás. As piadas sarcásticas-filosóficas que rompiam após o conhaque, decifradas pelos ouvintes anônimos como obscenas e ofensivas, ofereciam à Violeta (e simpatizantes) a suspensão da mesmice transcendental. Numa dessas, viram-se expulsas da La Bodeguita. Inflexíveis, enfrentavam os imbecis com chistes e pontapés. Sabiam se divertir, eis a inveja que causavam.
[Que fique claro: obcecado em narrar esta história, ludibriei, manipulei, escamoteei, comprei informações; fiz o escambau. E não me arrependo.]
Ex-jogador de futebol, um tal Diego, apresentou-se como ex-marido. Não bastasse o choque que sofreu com a notícia, recebeu uma ligação da Patagônia de uma garota a reivindicando como mãe. Prestes ao ataque de pânico, depois de ouvir o “hasta la vista, mamá”, engoliu dois comprimidos de Lexotan, dormiu vinte horas seguidas. Sonhou com Lars Von Trier gritando incessantemente, Ei! Ei! Ei! O eco avocatório se propagou dentro do triângulo de bambu, onde ela se encontrava com as mãos vigorosas enlaçando as pernas. O imenso planeta Melancolia, prestes a estourar, tornou a angustia insuportável. Ela despertou insatisfeita com a imagem de seu puzzle existencial. Lamentava sem saber o que fazer: ó, mundo careta!
Meses depois, a população, entretida noutras notícias, esqueceu-se de Violeta e dos novos casos que proliferavam. Ela, enfim, seguiu sem flashs e especulações. A última manchete, se me recordo bem, deu destaque para a sua recusa diante da convocação do Ministério Público para providenciar o registro de uma certidão de nascimento no 17º Cartório do Registro Civil.
Leila Diniz e ela zanzavam pelo Ibirapuera, quando ouviram do alto falante fixado numa Seringueira, uma melodia que, de súbito, despertou qualquer coisa em Violeta. A canção da roqueira Rita Lee em uníssono com o ritmo de sua pulsação cardíaca, devolveu-lhe parte do que estava perdido. Violeta fulgurou. Sei de quem é essa voz. Enfim! Reconheço a minha voz, reconheço os silêncios e as pausas. Sou eu quem canta! Ouça! Leila Diniz não a contrariou, inclusive notou que a amiga tinha o mesmo tipo físico da cantora, o mesmo timbre vocal, quase o mesmo tom e corte de cabelo.
Violeta abandonou o estado letárgico. Quis saber sobre si (ou sobre a Rita Lee, tanto faz), constatou, além de ser uma cantora espetacular, o radiante astral. Vegetariana e poliglota, conseguia se comunicar com animais, apesar do pavor de aranhas. Comprou várias peças de roupas no estilo “ovelha negra”, replicando os looks dos shows. Encheu uma sacola com os álbuns da discografia de Lee. Colocou o disco “Fruto Proibido”, de 1975, e experimentou algo parecido com o que Proust sentiu ao comer o biscoitinho banhado no chá. Navegou em curvas sobre a régua do tempo. Escolheu o melhor salão de beleza da região para a transformação do visual, os cabelos ruivos lhe deram a ousadia de que precisava, reclamou apenas do corte da franja, o que irritou um pouco o Dusek, cabeleireiro de renome, intolerante a críticas.
Contratou um advogado para solicitar judicialmente o registro tardio do seu nascimento: Doutor, Violeta foi apenas o recurso provisório para contornar o enigma; eu me chamo Rita, Rita Lee Jones. Demitiu-se por email. Comprou uma guitarra, fez aulas virtuais com professor canadense. Tentar esticar os dedos acometidos pela artrose foi uma experiência de tortura e frustração. Acabou trocando a guitarra pela gaita.
Descolou o endereço residencial de seu duplo. Embora Rita Lee tivesse muito o que fazer, acolheu-a sem reservas. Uns dizem que, por educação, outros, por piedade. O certo é que a convidou para o chá e bate-papo no jardim. Conversaram horas a fio sobre os coiotes que habitam a fronteira entre o México e os Estados Unidos. A seguir, embarcaram numa discussão metafísica sobre a peça O Rinoceronte, de Ionesco, daí foi um pulo para discorrerem sobre os segredos das avencas, samambaiais e reencarnações. Na despedida, Violeta desabafou: ufa, ‘me libertei daquela vida vulgar’.
[Tenho para mim que este era o chamado: sem as canções, as vidas se curvam à opacidade dos dias.]
Resolveu investir, contratou um aposentado que tocava órgão em igrejas. Optou pelo playback e performances. Firmou um contrato de trabalho com uma churrascaria, animaria a comilança nas terças, quintas e sextas. Noutros dias, apresentava-se em frente ao Parque Mário Covas como artista de rua. Confundida com a cantora, chegou a dar autógrafos… ah, e fez um ensaio fotográfico para a coluna “Sósias perfeitas” de uma revista eletrônica. Não sobrava tempo para o supérfluo, mesmo sendo tão necessário. Enojada do cheiro de carne tostada da churrascaria e do desrespeito dos clientes cantando ‘parabéns pra você’ junto à trilha sonora de seu repertório, rompeu com a vida de cover.
Recusou-se a atender o telefonema da filha falsa e do dito pai, o Maradona. Com esta frase, digamos, tirou o seu time de campo: desculpe o auê. A seguir, o advogado lhe relatou as vãs tentativas, ela não se rendeu, lavrou pelo próprio punho a certidão de (re)nascimento num papel especial com a marca d’água da capa do álbum “Reza”. A palavra “autêntico” pode ser visualizada sob a lâmpada violeta. Acusaram-na de falsidade ideológica, porém não conseguiram solucionar o embate: como enquadrariam o crime se nem ao menos sabiam a identidade base? Violeta era mutante.
Retornou à casa da Rainha do Rock, confidenciou-lhe a sua descoberta: as recordações são intrínsecas às trilhas sonoras. Inseparáveis, as Jones foram viver nas proximidades de uma pequena faixa de mata atlântica e, por lá, conviveram em irmandade com a natureza. Gostavam de tirar uma soneca na rede após o almoço sob o canto do uirapuru vermelho. Plantavam crisântemos raros, passeavam com os cães ao lusco-fusco, se dedicaram à produção de miniaturas de trens ferroviários (entretenimento que servia para aplacar a nostalgia das viagens na Maria-Fumaça), avançaram no teatro de sombras ao crepitar da lenha na lareira e confeccionavam marionetes transfiguradas. Atravessavam noites e noites em conversas intermináveis.
Foram fotografadas às margens do Lethes. O andarilho de nome Elvis testemunhou quando uma delas seguiu com o barqueiro dentro da densa neblina. Ignora qual delas seguiu rio-a-dentro, entretanto, recorda-se do momento em que o Anjo-Solidão pousou (ainda indeciso) sobre os ombros da que seguiu na direção leste.
Nasceu em Cataguases (MG, Brasil), e atualmente mora em Portugal. É formada em Administração de empresas e Psicologia, com especialização em Psicopatologia e Saúde Pública. Autora de Meu nome agora é Jaque (contos, Rona Editora, 2007), Manhãs adiadas (contos, Dobra Editorial, 2012), Para fugir dos vivos (romance, Editora Patuá, 2015), Diolindas (romance, Editora Penalux, 2016, escrito em parceria com Ronaldo Cagiano), Duelos (contos, Editora Patuá, 2018) e Terra Dividida (romance, Editora Laranja original, 2020).
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