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Dirce Waltrick do Amarante

Foto do escritor: mapasconfinamentomapasconfinamento

Atualizado: 28 de fev. de 2022




VIRULÊNCIA(S) NO BRASIL



A LIÇÃO*


Na sociedade da pequena Santana da Extrema-Unção, a high society não iria se curvar a um vírus qualquer, principalmente a um vírus comunista e chinês. Que ele fosse para Cuba ou Venezuela. O Brasil não era o seu lugar.


Para a elite local, já não bastasse o vírus, o cúmulo era ter que receber ordens de um biólogo de quinta, negro e ainda por cima africano – “Da Etiópia!”, diziam alguns –, o mundo estava realmente de pernas pro ar, não existia mais respeito. Para os mais instruídos e analistas políticos, o etíope certamente agia por ressentimento e ódio aos brancos, por isso queria vê-los trancados em casa.


As damas, em mensagens de WhatsApp, alertavam para um fato terrível: “Logo vamos ser dominados pelos negros”, e prosseguiam: “Essa é a ideia por trás da ‘inseminação’ do vírus, não ouviu o ministro?”. E, depois de postarem algumas figurinhas com a bandeira do Brasil, outra dama completava a ideia das amigas: “Negros e comunistas!”


Foi então que decidiram organizar um chá beneficente em apoio à causa branca e empresarial. Foi uma festa linda! Mas elas próprias não compareceram, mandaram os serviçais em lugar delas, os quais depois de uma semana foram entubados.


E as damas? Ora, andam desesperadas atrás de alguém para limpar a casa, colocar cloro na piscina, ir ao supermercado... Da próxima vez, mandarão só alguns deles, não todos: “Parece que precisamos sofrer para aprender alguma coisa”, lamuriou-se uma delas.


*Sim, é o título de uma peça de Eugène Ionesco.


***


OS EFEITOS DA CLOROQUINA


O ministro da Saúde, o segundo a tomar posse em menos de um ano de pandemia, andava calado. Isso não era novidade. Reclamavam do comportamento dele: sempre desorientado, os olhinhos sonolentos fixos no nada, a voz arrastada, sem entusiasmo e sem vigor.


Mas ele é homem de coragem!


Dizem que pegou na mão do presidente com o único propósito de se contaminar e, depois de infectado, fez uso de cloroquina para comprovar a sua eficácia e assim, seguramente, poder indicá-la para a população. Afinal, um médico de renome não pode colocar em risco nem a sua reputação nem a saúde do povo.


E eis que ele está curado, mas com algumas limitações cognitivas, como se tem observado.


***


OS EFEITOS DA IVERMECTINA


Tudo não passa de especulação, mas o fato é que muitos integrantes do governo desapareceram, entre eles, o secretário de Cultura, o ministro da Saúde e o ministro da Educação. O próprio presidente aos poucos está desaparecendo (ultimamente só é visto nos finais de semana ou no gramado entre as emas). Têm-se atribuído esses sumiços ao uso da ivermectina, que, como se sabe, elimina vermes e parasitas. Se o presidente ainda não sumiu de vez é porque, presume-se, sua dose diária do vermífugo ainda é baixa, uma vez que ele tem priorizado o uso da cloroquina que, como todos sabem, até as emas, não tem efeito nenhum.


***

CREMATÓRIO DELIVERY E GOURMET, A NOVA ONDA


O que seria deste país se não fossem os empresários?


Passada a temporada de verão no Brasil, com beach clubs e hotéis fechados, os empresários do ramo decidiram investir em novas atividades, sempre visando o bem-estar do cidadão.


Ao contrário de outras categorias, como professores, lojistas, profissionais liberais, que reclamam em tempos de crise, os empresários arregaçam as mangas e enxergam o futuro.


Foi com esse raciocínio ágil e pragmático que investiram em crematórios e inovaram com o serviço delivery e gourmet. Ou seja, pegam o cadáver no hospital ou onde quer que ele esteja e devolvem suas cinzas na casa dos familiares ou amigos. Com as cinzas, enviam também uma cesta de produtos gourmet, previamente escolhidos pelos clientes, para que possam celebrar a data com segurança e tranquilidade, sem precisarem sair de casa.


***


(Caso alguém me pergunte por que falei dos políticos e das classes mais abastadas e não falei das classes menos favorecidas do Brasil, aviso que as classes menos favorecidas nunca foram nem são o tema principal por aqui).



 

Ensaísta, tradutora e escritora. Professora do Curso de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autora, entre outros, de Para ler Finnegans Wake de James Joyce (que oferece uma tradução do capítulo VIII do livro), James Joyce e seus tradutores e As antenas do caracol: notas sobre a literatura infantojuvenil. Publicou dois livros de ficção: Ascensão: contos dramáticos e Cem encontros Ilustrados. Traduziu obras de Edward Lear, Eugène Ionesco, Gertrude Stein, Edgar Allan Poe e Leonora Carrington.

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