O FIM DO CONFINAMENTO
A literatura me levou a conhecer a Islândia, um país de escritores. Ganhei um presente de um amigo, o livro “Gente Independente” escrito por Aldór Laxness. Não se diz que amigos servem para nos abrir portas? Pois foi o caso.
Laxness, escritor nascido na Islândia, recebeu o prêmio Nobel em literatura de 1955. O livro que eu ganhei é uma das raras traduções do Islandês para o Português publicadas no Brasil. O livro é reconhecido como o Magnum opus da produção de Laxness.
Gente Independente narra a saga – palavra que o nosso idioma importou do islandês – de Bjortur de Summerhouse, um homem que decidiu abandonar a cidade para viver com a filha em uma propriedade rural comprada a duras penas, com as economias feitas ao longo de anos de trabalho. A propriedade é descrita como pequena e nela existe uma casa que recebe o nome de Casa Estival, local onde Bjortur passa o tempo a criar ovelhas.
A decisão deste homem, ao trocar um trabalho previsível como empregado na cidade, pela vida livre e isolada em um local distante de Reykjavík, traduz a mudança na sua vida em busca da liberdade e independência. Tal escolha traz implicações, cobra-lhe um preço, pois Bjortur se sujeita a levar a vida exposto ao frio, desprotegido das amenidades urbanas, expõe-se ao risco das erupções vulcânicas, das epidemias e da solidão.
Nas primeiras décadas do século XX era normal que os habitantes das áreas rurais na Islândia passassem longos períodos confinados, sem encontrar vivalma nem trocar palavras com alguém. A norma era não encontrar mais do que algumas dezenas de pessoas ao longo da vida.
A história do povo islandês demonstra marcante caráter de resiliência, pois viver naquelas paragens significa aprender a lidar com a adversidade dos elementos. Assim é mesmo nos dias atuais. Durante o início do século XX, o país experimentou tragédias marcadas pela erupção do vulcão Katla e pela gripe espanhola que em 1918 dizimou parte da população mundial. Reykjavík não passou ilesa. O tema da devastação causada pela pandemia foi tratado pela literatura, como nos mostra o cenário explorado pelo autor islandês contemporâneo, Sjón no livro Moonstone, que retrata o período do confinamento durante a gripe espanhola. A pobreza extrema que predominava na Islândia no início do século passado foi exacerbada pela gripe espanhola e motivou uma onda migratória para a América do Norte, associada à entrada do pensamento religioso conservador naquele país. Em Reykjavik existe um museu que retrata as rotas emigratórias dos islandeses cuja diáspora atingiu até mesmo o sul do Brasil. Não me consta que tenha deixado vestígios.
A história da Islândia foi marcada por tentativas frustradas de colonização da ilha, a exemplo do estabelecimento de monastérios já na idade média, por parte dos monges Irlandeses que navegaram ao norte atingindo as Ilhas Faroe e dali chegaram à Islândia, ou Thule como eles a denominavam. Tais tentativas ocorreram na segunda metade do século XVIII. Os monges irlandeses abandonaram a Islândia, seja por terem enfrentado dificuldades inesperadas de sobrevivência, talvez expulsos por novos colonizadores, ou ainda por terem encontrado um grau de confinamento absoluto, que ultrapassou o isolamento buscado. Tais episódios, de tentativas de colonização e de evacuação do local, são apresentados no livro History of Iceland: from settlement to the presente day, escrito por Jón R. Hjálmarsson. A sobrevivência dos que permaneceram exigiu persistente luta contra os elementos e o exercício do convívio com a solidão.
Isolamento e confinamento são características que fazem o mote do enredo de Gente Independente. Bjortur de Summerhouse perdeu a esposa que faleceu no parto, perdeu um filho para o frio, o outro filho emigrou para os Estados Unidos. Com os parcos recursos que acumulara ao longo da vida, ele adquiriu a propriedade onde passou a viver com a filha Asta, que não chegou a conhecer a mãe. Com Asta, o pai compartilhava o espaço exíguo da Casa Estival, local onde atravessam os invernos e verões em confinamento. Pura solidão e vida reduzida a mínimos.
Ainda podem ser encontradas as típicas casas rurais islandesas com o teto de turfa e pequenas janelas quase enterradas no solo. Outras habitações são construídas de tal modo que os moradores vivem no pavimento superior, acima do espaço que abriga os animais, o calor dos corpos das criações ajuda a aquecer o ambiente. Assim é descrita a Casa Estival que tem sob o piso, o estábulo onde vivem o cavalo, as ovelhas e a vaca que tem o nome de Búkolla. O feno, colhido e armazenado no verão, serve para alimentar os animais no inverno. O frio, que reina na ilha cortada pelo círculo polar ártico, impede que se abram portas e janelas durante a longa noite de inverno. A condição à qual estão submetidos Asta e Bjortur é de isolamento e solidão do pai, da filha e dos animais que vivem reclusos e imobilizados durante a persistente noite do inverno ártico. A pobreza, a doença e a solidão representam o preço pago pela independência.
Permanece na minha memória de leitor a cena do livro que marca o final do inverno. A chegada da luz traz consigo o primeiro sinal emitido pela natureza que renasce à espera do verde e de temperaturas amenas. É quando as portas e janelas da Casa Estival são abertas, a porta do estábulo é destravada, e os animais são soltos no campo ainda coberto pela neve. O frio e a escuridão perderão o reinado e darão lugar aos dias longos da primavera e do verão. Na cena que marcou a minha mente tropical, nada acostumada ao choque das estações, Búkolla, a vaca, deixa o estábulo e corre livre pelo campo. Ela salta em júbilo, rola o corpo na neve, emana a energia retida durante o inverno ao ver a luz. O comportamento do animal expressa a reação motivada pela mudança, o isolamento e a escuridão dando lugar à liberdade e à luz. A pastagem, que ainda não cresceu, é apenas uma esperança, mas a réstia de luz é suficiente para motivar a reação do animal frente a liberdade recém adquirida. O instinto do animal lhe revela que os dias longos chegarão.
Eu hoje compreendo a reação de Búkolla de maneira diferente daquela que vivenciei ao ler o livro. Por vivermos em tempo de pandemia, somos também movidos pela esperança do término do confinamento, da penumbra, da reclusão. Percebemos que persiste a incerteza sobre o que encontraremos ao abrirmos as portas e janelas das nossas casas estivais.
A obra de Laxness é numerosa, vai além do livro Gente Independente. O contraste entre o inverno e as luzes, por ser tão marcante na Islândia, reaparece em outra obra que recebeu o título, “Under the Glacier”. O autor retoma o contraste e o texto nos remete ao mesmo momento da liberdade. No livro, ainda não publicado no Brasil, o autor situa o dia 11 de Maio como a data do término da estação de pesca do inverno. É o período de tempo conhecido por “between hay and grass” – entre o feno e o pasto – um tempo no qual o estoque de feno guardado já foi consumido, e a pastagem ainda não cresceu. Tal momento expõe a fragilidade humana, é descrito pelo autor como; “Um período preocupante para os ruminantes. De fato, a transição para a primavera tem sido a estação, na Islândia, na qual os animais e os homens costumam morrer”.
A mensagem é que animais e homens são frágeis e podem vir a morrer na transição entre períodos de confinamento e liberdade. Mais uma vez penso na experiência à qual a pandemia nos submete, muitos de nós ainda confinados e a sonhar com a liberdade, e com o tempo pretérito de pequenas liberdades.
Ao concluir a leitura do livro Gente Independente, eu estava decidido a conhecer a Islândia. Sairia do trópico para visitar o país do Atlântico Norte, cortado pelo círculo polar a meio caminho entre a Europa e o continente americano. A vida acadêmica me ajudou a chegar lá quando um colega, professor da Universidade de Reykjavík, presidiu a entidade científica da qual eu fazia parte. Como presidente da entidade ele propôs que o encontro científico anual ocorresse em Reykjavik, duraria quatro dias e terminaria no primeiro dia do verão. Como escritor eu repeti a visita nos encontros literários realizados em Reykjavik, uma das cidades da literatura da UNESCO.
Findo o congresso, seguimos, eu e minha esposa, a viajar pelo país. Visitamos uma aldeia com doze edificações, onze casas e, a décima segunda, um museu dedicado a um escritor nascido no local. Escritores têm alta reputação na Islândia. Visitamos a casa onde viveu Aldór Laxness, hoje também museu. Era verão e o sol não permitia que a noite se manifestasse, um drama para quem precisa organizar o sono. Rodamos pela estrada que circunda a ilha, paramos em pousadas mantidas por famílias que normalmente vivem em isolamento, hoje facilitado pela conexão da rede mundial de internet. Em uma dessas casas havia um estábulo encravado em um barranco sobre o qual a morada da família fora edificada. A imagem me remeteu à cena do livro de Laxness, me lembrou a Casa Estival.
É inspiradora a resiliência do povo islandês, que construiu um país com uma das maiores rendas per capita do mundo, que ganhou a independência da Dinamarca em 1944, cujo símbolo nacional é uma coleção de livros, as Sagas, e cuja capital é uma das Cidades da Literatura da UNESCO. Segundo o autor Sjon, a Islândia, tendo sido colônia da Dinamarca, nunca perdeu o caráter nacional, o país existe motivado pelo idioma islandês, que representa a peça de resistência, junto com a produção literária pujante. O ato simbólico da independência foi a devolução das Sagas.
A Islândia e a obra de H. Laxness nos ensinam que independência e liberdade são valores inegociáveis, mesmo que a natureza nos imponha períodos de epidemias ou lideranças políticas imponham-nos ditaduras assumidas ou escondidas sob o manto de instituições democráticas capturadas. A pior escuridão não é causada pela natureza, mas pela perversidade humana.
Vivendo no Brasil em meio a pandemia e com liberdades democráticas tolhidas, eu compreendo a reação de Búkolla ao sair do isolamento, a saltar no campo, a esfregar a cara na neve, a respirar o ar puro, a sentir o vento, a encontrar outros animais da sua espécie. Uma reação, antes de tudo, humana. Cabe lembrar a citação do autor, que o período da liberdade recém adquirida é também o tempo em que animais e homens costumam morrer.
Escrevo em momento de isolamento social imposto pela pandemia. Escrevo a ver o esfacelamento das instituições democráticas no meu país e em outros países no mundo. Ainda escrevo, e antes de tudo, escrevo por acreditar no poder da palavra, a sonhar em ser como Búkolla.
Aldór Laxness – Escritor Islandês
Obras de Laxness citadas:
Under the Glacier. Vintage Books. New York, 1968.
Edição em Inglês de 1972, com introdução de Susan Sontag.
Gente Independente. Ed. Globo, 2005.
Decio é escritor, vive em São Paulo, estudou nas Universidades de São Paulo, da Carolina do Norte e da Califórnia em Berkeley. É Professor Titular Sênior da Universidade de São Paulo. Publicou os livros Como são Cativantes os Jardins de Berlim, Acerba Dor e O Filho de Osum. Escreve ensaios sobre literatura e artes, é curador da Festa Literária Além da Letra, membro do Polígono Sul-Mineiro do Livro, criou o Clube de Leitura de Gonçalves-MG, recebeu a medalha do mérito Científico de São Paulo. Acredita na Educação e na Arte como fundamentos para uma sociedade equilibrada.
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