top of page
Foto do escritormapasconfinamento

Cristina Drios

Atualizado: 28 de fev. de 2022






UM CÃO DE RODA DA PRÓPRIA CAUDA




Continuas a sentir-te como um cão de roda da própria cauda e tudo o que desejas é que nada disto rua.


Não precisas de mapas.


Os mapas servem para ir de um lado para o outro, do conhecido ao desconhecido, de dentro para fora.


O território é por demais conhecido. Quarto-sala-quarto.


Também já conhecias o trajecto casa-trabalho-casa.


Agora o trajecto apenas encurtou. Conheces todos os caminhos, todos os cantos da casa. Podias viver de olhos fechados ou no escuro. Não era muito diferente antes e há nisso um quê de horror.


Antes cruzavas-te com desconhecidos nos seus trajectos conhecidos.


Agora só te cruzas com a tua impaciência e com os gatos.


Antes havia pessoas que tinhas de cumprimentar.


Não tens qualquer saudade das pessoas que cumprimentavas.


Precisas cada vez menos de muitas e cada vez mais de poucas.


Sozinha, estás menos sozinha. Ou finges.


Tens três gatos e uma varanda cheia de plantas que não te tens esquecido de regar.


Pões música. Às vezes, vês um filme.


Entendes por que razão as pessoas vão a concertos ou vão ao cinema juntas. Cada um ouve a sua música e cada um vê o seu filme e, no fim, quando muito, falam disso. Explicam uns aos outros o que gostaram naquela música, naquele filme. Nunca te interessaste em saber porque gostam os outros do mesmo ou de outra coisa ou sequer porque gostam de falar daquilo que gostam e do que não gostam.


Também não queres ter de explicar por que razão gostas daquilo que gostas ou por que razão não gostas daquilo que não gostas.


Graças a deus sempre foste uma péssima companhia para se levar a qualquer lado.


Lês.


Ler é um acto solitário. O melhor da leitura é que não tens de explicar nada a ninguém. Nem sequer o que andas a ler.


Cada um lê o seu livro e sobre isso já tanto se disse que cada um prefere mesmo ler o seu livro.

Envias mensagens de quando em vez. Raramente telefonas. Não te aborreces se não te respondem ou se não te atendem. Ou finges que não te aborreces.


Na rua falas com desconhecidos. Comoves-te com coisas de nada. Por dá cá aquela palha, vêm-te as lágrimas aos olhos. O teu fascínio pelas histórias que te contam é ilimitado. Cada pessoa é uma ilha, como já te disseram. E estamos todos à deriva.


A tua ilha tem um nome secreto.


Sempre viveste confinada ao teu corpo, à tua sala de trabalho, à tua cidade, à tua conta bancária, à tua vida.


Disseram-te que ficasses em casa. Que trabalhasses em casa. Que te fechasses em casa.


Disseram-te que não podias ir ao restaurante nem ao centro comercial.


Disseram-te que não podias ir ao teatro nem ao cinema nem à biblioteca.


Disseram-te que não podias ir à praia nem ao ginásio.


Para os circunstancialismos procuraste soluções, umas melhores que outras, do resto não há como escapares. Fizeste mais festas aos gatos e regaste as plantas todos os dias. São sempre os mesmos gatos e as mesmas plantas. Comeste baldes de tremoços e talhadas de melancia. Dormiste de mais, dormiste de menos. Não acordaste com o estertor do primeiro avião em aproximação ao aeroporto. Nem te deitaste com o do último. No céu já só há nuvens e pássaros.

Agora dizem-te que não podes decidir ir amanhã a Roma ou a Paris.


De qualquer modo, nunca decidiste ir a Roma ou a Paris de véspera: precisas de alguém que te tome conta dos gatos e das plantas. Não se arranja isso de um dia para o outro.


E além disso, queres logo voltar a casa assim que chegas a qualquer lugar.


Nunca quereres estar onde estás começa a ser complicado. Já tinhas decidido que o melhor é não ires a lado nenhum, para evitares o desconforto de estares onde querias estar, mas deixaste de querer assim que lá chegaste. Às vezes, acontece o contrário, mas é raro e ainda mais difícil de explicar – não que alguma vez tenhas tentado.


Às vezes, no entanto, acontece chegares a um lugar e esqueceres que tens para onde voltar. É simplesmente porque, nesse caso, acabaste também de chegar a casa. Era só questão de ir buscar os gatos e as plantas.

Dizem-te que não podes andar na rua das onze da noite às cinco da manhã.


Também é esquisito sequer pensares em andar na rua a essas horas.

Os gatos estão como tu: desde sempre confinados ao seu corpo, ao seu espaço, à sua vida. Estão bem alimentados, têm a pelagem lustrosa, um ar apaziguado. De vez em quando, assarapantam-se, arranham o ar com as garras retrácteis. Ratam as plantas.


De resto, pouco mudou.


Continuas a afligir-te com os vizinhos, cujo gato tigrado anda desaparecido. Fotografas o desespero colado com fita-cola. Ainda por cima os gatos tigrados são difíceis de distinguir uns dos outros.


O espaço estreitou-se. E é tudo.


Continuas a sentir-te como um cão de roda da própria cauda e tudo o que desejas é que nada disto rua.


 

Nasceu em Lisboa e é licenciada em Direito. O seu livro de contos Histórias Indianas venceu, em 2012, o Prémio Literário Cadernos do Campo Alegre da Fundação Ciência e Desenvolvimento, Câmara Municipal do Porto, e publicado pela Editora Objectiva. No mesmo ano, Os Olhos de Tirésias, a sua estreia no romance, foi finalista do Prémio LeYa e vencedor da Selecção Portuguesa da 27ª Edição do Festival do Primeiro Romance de Chambéry. Em 2016, o conto A Mãe foi escolhido para integrar a antologia de contos O País Invisível do Centro Mário Cláudio. Adoração (Teorema/Leya), terminado em 2016 numa residência literária na Translator’s and Writer’s House de Ventspils na Letónia, é o seu segundo romance.

96 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page