NORMALIDADE
Despertou na hora de sempre e na hora de sempre foi ao banheiro. A luz oblíqua entrando no quarto dava a sensação de paz e dever cumprido depois de uma noite calma. Erguer-se para o trabalho ampliaria a certeza de estar em dia com a ordem de tudo. A ordem que governava sua existência, o universo, as horas, o curso da luz no tapete.
Ao levantar a tampa da privada, porém, deu de cara com um rato morto dentro do vaso, afogado na água, com a parte de trás um pouco descoberta. Deu um grito e fechou a tampa com força. O estrondo duplo fez com que os filhos acordassem e fossem verificar onde estava o incêndio.
– Não abram aqui! Tem um rato morto no vaso!
Enquanto a menina de 10 anos ainda dormia em pé apesar do barulho, o irmão adolescente não teve medo e se precipitou em levantar a tampa da privada para ver o cadáver. A surpresa quando abriu: nada.
– Tá louca, mãe. Dá um tempo, né!
Foi embora sem comiseração.
A menina fez cara de desprezo, depois de conseguir abrir um dos olhos e verificar que, de fato, não havia nenhum rato boiando no vaso. A mãe era louca.
– Mãe, você deveria ser internada à força agora!
Como fazer para tirar o rato dali se só ela o via? Com que forças buscar um saco de lixo e fazer o guincho daquele ser? Não tinha dúvidas da própria sanidade mental. Devia haver alguma explicação para aquela ilusão de ótica, jogo de sumiço e aparição.
Antes de abrir novamente a tampa da privada, foi até a cozinha e pegou um saco de lixo. Ela mesma faria o trabalho sujo, a quem mais recorrer? Por um segundo pensou em chamar o porteiro, mas logo imaginou que, se por acaso o rato não estivesse ali de novo, teria que prestar contas oficiais da sua loucura.
Abriu a tampa e lá estava ele: marrom, inchado e boiante.
Enfiou o animal dentro do saco com os olhos semifechados, o mínimo de visão para não deixar o bicho cair no chão. Pensou em dar uma passada no quarto dos filhos e mostrar o que eles não tiveram coragem de ver – sim, achava que ver o rato dentro da privada era uma questão de coragem. Não estava delirando. Quem delirava era quem não via o rato morto. Só podia ser assim. Do contrário, era aceitar a própria loucura.
Abriu a porta da lixeira e desabou o saco de lixo com o rato pesado de água da privada. Poderia então voltar à sua rotina dos dias comuns. O trabalho à espera. Um banho quente no meio do caminho, iria esquecer a visão tenebrosa do ser boiante. De onde surgiu o rato era a pergunta que ela tentaria evitar naquele momento.
O dia seguiu dentro da normalidade. Nenhum sobressalto, apenas os relances em que a visão do rato na privada invadia a tela mental, exigindo uma rápida troca de canal. Ninguém no trabalho poderia saber do ocorrido. Ninguém talvez tivesse a coragem de acreditar. A noite chegou e também o cansaço. Em casa, os filhos não tocaram no assunto do rato. Era certo que a mãe tinha ficado presa no meio de pesadelo.
A alternativa era a loucura.
O dia seguinte amanheceu na mesma claridade do dia anterior, a luz riscando o tapete; como ela gostava daquela forma mansa de acordar.
Levantou-se, foi ao banheiro e abriu a tampa do vaso em câmera lenta. Nada.
Chegou a acreditar na teoria do pesadelo por um momento. Ou então, tinha vivido uma realidade paralela até a hora em que jogou o bicho na lixeira. Só pode! Estava explicado... Voltou a sentir a sensação plena de dever cumprido com a ordem universal das coisas que governava seus dias, as horas, a luz oblíqua no tapete no quarto...
Abriu o chuveiro, estava pronta para tomar o banho morno e energizante da manhã, quando olhou para o ralo e viu um rabo grande e peludo escapulindo para fora das gradezinhas – pavor! Olhou mais de perto, emudecida. Não tinha voz para gritar, tamanho o asco. Foi quando, seja pela força da água batendo ou pelo volume imenso dentro do pequeno ralo, a tampa se soltou, e o que apareceu foi o horror: um rato ainda maior, morto, deslizando no chão do box.
Precisou interromper, não sabe com que força do além, o seu estado de torpor para pegar o saco de lixo na cozinha e refazer o que parecia ser um ritual: livrar-se da criatura. Pensou em mostrar o animal para os filhos e chegou a ficar um segundo com ele nas mãos no meio do corredor – mostrar ou não mostrar?
Não chamou os filhos, por fim. Precaução. Se eles novamente não conseguissem ver o bicho, a sanidade dela estaria no limite.
Desfez-se do rato, higienizou o banheiro e voltou para o banho.
Pensou que dali por diante não conseguiria mais acreditar na teoria do pesadelo. Nem na realidade paralela. Sua primeira ideia talvez fosse a verdade profunda. Para ver os ratos, era preciso coragem – será? Teria que ensinar os filhos a aprendizagem da hora. Tomou a decisão de, se no dia seguinte recebesse outra visita macabra, iria chamá-los para testar mais uma vez se eles poderiam ou não ver o que a mãe via.
De qualquer forma, teria que anunciar o que provavelmente fosse a certeza mais difícil: a antiga normalidade não existiria nunca mais depois da visão daquele primeiro rato morto, marrom, inchado e boiante.
A alternativa era a loucura.
É jornalista e doutora em Letras pela Universidade de Utrecht, na Holanda, com tese sobre Clarice Lispector. Trabalhou como professora-visitante na Uerj, em Teoria Literária. Publicou mais de uma dezena de livros, entre romances, literatura infanto-juvenil, resenhas e biografia. O romance Paisagem de porcelana (Rocco) foi finalista do Prémio Rio de Literatura 2015. É colunista da Revista Seleções (Reader´s Digest), na qual assina a coluna online Histórias que a vida conta.
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