REESCREVENDO A HISTÓRIA
INT. AVIÃO – DIA
O interior do avião cargueiro lembra as entranhas de um animal mastodôntico. A estrutura metálica da fuselagem como uma ossada. Vento tremulando os uniformes verde oliva. Paraquedistas enfileirados. Um oficial sinaliza quando é a hora de cada um saltar. Cabos de aço e mosquetões deslizam por uma haste no teto da aeronave. Se soltam na hora do salto. O Capitão é um dos paraquedistas. Cerca de trinta e cinco anos. Alto, esquálido, cabelo castanho claro, sobrancelhas arqueadas. A porta é um rasgo no ventre do Hércules C-130. O Capitão reza baixinho para São Miguel, o protetor dos paraquedistas. A quinze mil pés de altura, o Capitão é expelido.
EXT. CÉU – DIA
Queda livre. Vento deformando o rosto. O Capitão aciona o paraquedas. Vento explode. Baque. A força de arrasto diminui a velocidade. Mesmo assim, o Capitão alcança o solo com uma intensidade maior do que deveria. Sente o pé direito na hora do impacto. Em terra firme, maneja o paraquedas para interromper a ação do vento e anda mancando.
INT. QUARTEL/REFEITÓRIO – DIA
Burburinho. Diversos militares reunidos em torno de uma mesma mesa. Uma revista passa de mão em mão. Uma foto do Capitão estampa a matéria. Uniforme verde, uma insígnia que mostra pequenas asas de prata e um cap grená. O título diz “O salário está baixo”. Quando o Capitão entra no refeitório, mancando, os cadetes batem palmas.
INT. APARTAMENTO DO CAPITÃO/COZINHA – NOITE
Apartamento pequeno. Meia luz. Luminária pendente sobre uma mesa de fórmica. A luz se projeta sobre o rosto do Capitão, fazendo as sobrancelhas parecerem ainda mais arqueadas. Vários papeis espalhados sobre a mesa. Desenhos que beiram o infantil. Croquis. Um esquema rústico mostra um projeto de bombas caseiras, duas pilhas 1,5V, relógio, espoleta eletrônica, TNT, bem como locais em que podem ser detonadas.
EXT. QUARTEL/PÁTIO – DIA
Vários cadetes reunidos em torno do Capitão. A cada frase dita por ele, gritos de concordância, exaltação. Um deles brada, levando o braço ao alto e segurando a revista enrolada como se fosse um canudo. Um oficial de alta patente passa pelo local e encara o Capitão. Ele faz a continência, mas desvia o olhar, mirando o chão. Todos os cadetes fazem a continência. O oficial sustenta o olhar por alguns segundos antes de ir embora.
INT. APARTAMENTO DO CAPITÃO/COZINHA – NOITE
Meia luz. Mesa de fórmica. Luminária pendente sobre a mesma. O Capitão solda fios e componentes. A fumaça do soldador se mistura à fumaça do cigarro que repousa sobre o cinzeiro. Seus movimentos são lentos e cuidadosos. Quando termina de arranjar todas as partes das bombas, as guarda dentro de uma mochila.
EXT. PRAIA – DIA
Vários cadetes jogam futebol de areia. Alguns convidam o Capitão para se juntar ao time. Ele faz uma negativa com a cabeça e aponta para o pé direito. Conversa em tom de confidência com outros cadetes. Olha para os lados e mostra os esquemas nos croquis. Mexe com duas mulheres que passam próximas a eles, e depois volta a falar em tom de confidência.
EXT. ARREDORES DO QUARTEL – NOITE
Luzes pálidas dos postes mal iluminam a rua. O Capitão estaciona uma quadra antes do quartel. Caminha furtivo, olhando para os lados e para trás a todo momento. Carrega a mochila. Há um automóvel estacionado em frente ao quartel. O Capitão se aproxima com cuidado para que os soldados na guarita não o vejam. Se abaixa e se posiciona atrás do veículo. Lentamente tira de dentro da mochila uma das bombas. Olha em todas as direções mais uma vez. Liga o relógio, que emite um bipe. Aperta cinco vezes um dos botões, e uma vez um outro botão, que confirma o tempo ajustado. Quando o relógio começa a contar, percebe que marcou cinco segundos e não cinco minutos. Desesperado, levanta-se rapidamente para correr, mas é traído pelo pé direito que, no movimento brusco, o impede de fugir com a rapidez necessária. A explosão é ouvida a quarteirões de distância.
O Brasil está a salvo.
André é natural de Porto Alegre (Brasil) e radicado em Chapecó, SC, Brasil, desde 2004. É autor de Insônia (2011) e Modos Inacabados de Morrer, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura (2017) e publicado na Itália. Em 2018, venceu o Prêmio Off Flip, da Festa Literária Internacional de Paraty. Em 2020, publicou seu segundo romance, Morte Sul Peste Oeste.
Muito bom, André! A ficção é melhor que a realidade. Aqui o vilão morre! Abr