MESES EM LINHA RECTA
É preciso encontrar lugares estratégicos para observamos o futuro, faz parte da nossa natureza planearmos. É profundamente humano escalarmos uma montanha apenas com o propósito de escutar a voz do vento ou da luz, ouvirmos os seus murmúrios para nos projectarmos no tempo. Mesmo no quotidiano, subimos às arvores dos jardins mais próximos para pensarmos em dias e em semanas, precisamos de um ponto mais alto para vermos um mês inteiro. A pandemia, porém, arrasou com a possibilidade de fazermos planos, deixámos de olhar para mais longe e perdemo-nos das perspectivas. Os dias arrastam-se na monotonia de uma cerca sanitária; fechados em casa, sentimo-nos lentamente aprisionados na própria pele. Os meses são linhas rectas sempre iguais e parecem não ter horizonte que os guarde, nem na memória, nem no futuro. Vai deixando de haver registo para o tempo; a ordem dos dias, das semanas e dos meses persiste, mas muito pouco os distingue.
Nestes tempos de contaminação, os solitários deixaram de sonhar com o amor, sejam jovens ou mais idosos – talvez os jovens não se tenham deixado corromper da mesma maneira pela extinção dos sonhos. Desejar um desconhecido, conhecer uma nova pessoa, tocá-la, cheirá-la arrasta só por si novos perigos que podem, de súbito, ser letais. O amor sempre foi perigoso, a paixão sempre navegou em vagas alterosas de fantasia que podiam empurrar os amantes para costas rochosas ou afundá-los nas profundezas dos oceanos. No entanto, as paixões só costumavam matar o coração, não tendo poder, só por si, de transformar ninguém em cadáver. Os beijos costumavam trazer alegria e prazer. E se, porventura, os lábios trocavam micróbios, eram demasiado inofensivos para se sobreporem ao desejo. Agora não é assim e, como todos os outros espectáculos, os novos amores foram cancelados.
A solidão não infecta apenas aqueles que não têm laços amorosos, captura também nas suas redes os amantes antes apaixonados. Os casais que vivem na mesma casa sentem-se como se tivessem embarcado num grande navio, perdidos no meio de um enorme temporal. Há o barulho dos miúdos sempre a brigar – os mais novos põem-se a chorar e emitem gemidos contínuos –, o barulho das obras no prédio ao lado, da música do vizinho de cima, mas sobretudo há a irritação, cada vez maior, entre os dois. De súbito, eles, que tinham tantos planos, ficaram sozinhos no interior de um quotidiano em que nunca se afastam e, lentamente, as palavras também são contaminadas. Deixam de carregar sonhos e já só transportam tarefas diárias. Ao serão, marido e mulher fixam os olhos na televisão, um olhar vazio e perplexo perante os gráficos dos infectados, a sobrelotação dos hospitais, o número de mortes, a miséria dos desempregados ou a coreografia dos manifestantes em violentos protestos contra os confinamentos. Depois, numa das raras noites em ele se aproxima para a beijar, ela não compreende o que ele quer, o que pede do seu corpo. O amor passou a ter o cheiro da fadiga e da inquietação.
Talvez os mais perplexos sejam, ainda assim, as crianças. Foram proibidas de brincar e de ter uma imaginação destravada. Deixaram de poder abraçar os amigos, de correr com eles e de lhes bater. Aprendem a ler através do ecrã, as palavras escritas parecem-se com desenhos da televisão, só que não têm a mesma graça nem nenhuma animação. Porventura, ainda mais surpreendidos estarão os bebés, porque as únicas pessoas que têm rosto são as mães, os outros, todos os outros, só têm olhos.
É só mais um mês, vá lá, dois ou três até estarmos todos vacinados, pensamos nos dias melhores. Os pés nus estão calçados com pantufas ou chinelas, e é com esses tristes sapatos que procuramos, ainda e sempre, o caminho da esperança.
Ana Cristina é docente universitária no ISPA-IU e doutorada em Psicologia da Educação. Publicou Mariana, Todas as Cartas (2002), A Mulher Transparente (2003), Bela (2005), À Meia-luz (2006), As Fogueiras da Inquisição (2008), A Dama Negra da Ilha dos Escravos (2009), Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid (2010), Cartas Vermelhas (2011, selecionado como Livro do Ano pelo jornal Expresso e finalista do Prémio Literário Fernando Namora), O Rei do Monte Brasil (2012, finalista do Prémio SPA/RTP e do Prémio Literário Fernando Namora, e vencedor do prémio Urbano Tavares Rodrigues), A Segunda Morte de Anna Karénina (2013, finalista do Prémio Literário Fernando Namora), A Noite não É Eterna (Prémio Fernando Namora 2017), Salvação (Parsifal, 2018), As longas noites de Caxias (Planeta, 2019), Rimbaud, o Viajante e o seu Inferno (Exclamação, 2020) e Bela (reedição, Bertrand, 2020). Tem livros publicados no Brasil e na Alemanha.
Tão verdade. Revi-me na ausência de perspectiva. No distanciamento dos corpos. Na estranheza da aproximação. Almerinda