OS VÍCIOS DO MEU PAI
À madrugada, o quadro clínico piora. A lua e as estrelas presidem a noite e meu pai alista nessa presidência os seus gritos de desespero. Grita com toda a força que tem, mas as cordas vocais rendem-se ao peso da idade e a voz arfa. Grita nomes de vivos e de mortos.
As águas irrompem por todos os interstícios do corpo. A cada dia a epiderme avermelha como um tomate maduro. Os olhos saem dos eixos como dois cometas fugindo da órbita. Ficamos temerosos, porque era com os olhos que meu pai ouvia desde que há 20 anos o ruído das máquinas nas minas de platina roubou-lhe os ouvidos. A surdez é a mais viva lembrança que ele traz da terra de Mandela.
Quando a dor que se senta por cima dele dá uma trégua, fita-nos com aqueles olhos vermelhos. Sempre que meu pai falava, gritava na tentativa de ouvir a si mesmo. Como conseguisse se ouvir, sempre acreditou que a surdez eram os outros falando baixo. Mas desta vez, num esforço tremendo, apenas balbucia:
— Por favor, filhos. Só um pouquinho. Prometo que não vou exagerar.
Entreolhamo-nos. Estamos todos duvidosos. Tememos estar a desenhar a mudança do nosso pai para o cemitério. Mas também não aguentamos a agonia. Todos cerramos os lábios. Meus ouvidos esforçam-se para fintar o molho de palavras que vêm do meu pai. Peço a Deus o milagre da cegueira para não ver a imagem do meu pai estatelado e em ardente súplica.
Num eco sem fim, consolavam-nos as palavras do médico: vai ser difícil. Terá impulsividade que não caberá nele. Sofrerá depressão, irritabilidade e ansiedade. Adiará constantemente o sono e negar-se-á a sorrir. Ele não tem como parar sem a vossa ajuda. Vocês serão a clínica de reabilitação. Não vos aconselho a procurar por outra.
Sabíamos de tudo isso, mas uma coisa é saber que o inferno existe, e outra é estar lá. Algo explicava a propensão do meu pai aos vícios: meu avô também tinha sido um viciado e foi ele quem o expôs precocemente. Temíamos que também pudéssemos estar a caminho ou já dentro dos vícios. Em parte talvez tenhamos sido culpados. Dávamos tudo ao velho, pensando que fazíamos bem.
Comunicar-lhe que deve abandonar o que mais gosta é penoso. É um quebra-cabeças de génios. Dizer até pode ser fácil, mas nos era difícil explicar afavelmente a um surdo. Pior ainda era transmitir o palavreado do médico: os circuitos cerebrais envolvidos na busca por prazer tornam-se hipersensíveis às memórias que lhe ligam aos vícios, por isso devem evitar responder aos seus pedidos. Podíamos escrever. Entretanto, para nós, que só conhecemos um alfabeto, o velho era analfabeto.
Só pela manhã o médico chega. Observa o paciente e convence-se de que a situação tinha passado de delicada para crítica. De forma fixa, olha para o vazio diante de si. Medita e convoca imediatamente os deuses da psiquiatria. Não eram só os vícios, mas parecia que desde que lhe cortáramos os prazeres, papá tinha evoluído para um caso de loucura.
O médico concorda connosco. É preciso encontrar um atalho para não perdermos o meu pai. Nem que fosse para ceder-lhe um pouquinho. Faz-se uma luz na cabeça do médico. Corremos para o mercado e compramos o plástico gigante que nos recomenda para o tratamento do meu pai.
Cobre totalmente o meu pai com o plástico. Faz uma abertura na zona da face, encaixa uma viseira e máscara de protecção facial. Cria aberturas à direita e à esquerda, por onde se podem meter as mãos, e autoriza:
— Podem abraçar-lhe.
Quase que abruptamente, o quadro clínico melhora. Não vemos os lábios, escondidos pela máscara, mas os olhos sorriem. A vida se expressa pelo três: nascimento, vida e morte. A santidade cristã se expressa por três: pai, filho e espírito santo. Os vícios do meu pai se expressam em três: receber visitas de filhos e netos, abraça-los e beijá-los. Mas o pandemónio da coroa pôs-se a meio e tivemos de cortar tudo. Falta-lhe o toque dos beiços, mas consolam-lhe os raros abraços e ver os netos, ainda que seja a pelo menos metro e meio de distanciamento físico.
Nasceu na cidade de Maputo. É autor do romance Ilusão à Primeira Vista (Prémio Literário TDM 2016). Organizou e publicou textos nas coletâneas Fique em casa amor (poesia) e 19 cartas para a covid-19, ambas da Associação Cultural Xitende. Os assassinos também choram foi um dos 12 seleccionados para integrar a colecção Olhos Deslumbrados: Histórias de Maputo, da Fundação Fernando Leite Couto. É co-autor de peças de teatro e de radionovelas. Escreve e publica em revistas e blogues.
Sabe o livro "As máscaras da verdade" me fez gostar de ler livros, antes eu só gostava de ler quadrinho, foi só eu ler esse livro que me apaixonei por leitura (livros). Agora sou fã dele (Almeida Cumbane)