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, paralisada entre olhar o que acontecia e o computador, na noite anterior eles haviam conversado, ele fizera as malas às pressas porque cada vez que tentavam se entender, ela continuava sentada, as luzes da máquina acendendo seu rosto, ele ainda disse alguma coisa antes de sair, mas ela estava preocupada com as tarefas do trabalho, ouviu apenas o barulho da porta batendo, ele se foi, ainda pensou, o cachorro ergueu o pescoço por conta do barulho, ela respondia às mensagens de e-mail que recebia, o cão voltava a deitar encostado ao seu pé debaixo da mesa da escrivaninha, senhor Prudêncio, digitava, ajeitando os óculos que escorregavam pelo rosto, ouviu então o barulho da chave passando por debaixo da porta, o cão foi ligeiro xeretar, fez um movimento involuntário com a cabeça movendo-a de um lado ao outro, desnecessário, escreveu na mensagem, depois apagou, não era bem isso que queria escrever, mas os pensamentos a driblaram, o cão voltou com a insatisfação de um cão que não cumpriu seu dever de tomar conta da casa, ela olhou para a tela, apagou a palavra bem devagar soletrando des-nes-ces-sá-rio e tornou a digitar a resposta certa ao cliente, o silêncio agora era seu companheiro, apenas o som do teclado e de vez em quando o ronronar do bichano, você pode imaginar como me sinto, pode baixar essa crista e perceber que sou um homem e estou no momento mais difícil da minha vida e você sequer se importa, as palavras dele reverberavam em sua mente, os dedos paralisaram diante das teclas, ele se foi, ela repetia, senhor Prudêncio, a equipe está precisando que o senhor envie os relatórios ainda essa semana, continuou a digitar, de repente levantou-se, exausta, olhou de relance a bagunça do quarto, a cama desarrumada, os lençóis pelo chão, a porta do armário de onde ele retirou suas roupas escancarada, em meio ao vazio, suspirou, encostou a porta sem olhar para dentro, num relance, o cão se aproximou para cheirar, não, pode sair daí, Chopin, gritou para o cachorro, e se dirigiu para a sala e viu que a chave sobrevivia ao caos daquela relação inerte com o chão, pensou no que ambos haviam se transformado um para o outro, no que ele exigia que ela fosse, no que ela não sabia ser, inventou uma escapulida desses pensamentos, mas a voz dele ainda ecoava,
e chorou, uma vontade de se esconder e ser levada para longe, como um sopro, mas ficou chorando ali mesmo na sala, um choro seco, áspera de um amor que abala todo o corpo e vem rasgando a terra sob o crepúsculo que invade as manhãs,
ela chorou,
devagar foi percebendo as coisas ao redor, a casa intacta dos momentos ruins, a cabeça reagindo aos terremotos da alma, uma fúria de todas as coisas que estavam acontecendo ao redor do mundo e com as pessoas, o esvaziamento de tudo, as distâncias, era preciso recuar, era preciso sobreviver apesar de, o trabalho a esperava, o cãozinho a espiava sem sequer se mover, os olhos de um amor sem taxas, nem juros nem correções, sem acréscimos, olhava sua dona de longe, como se entendesse que aquele era o seu momento e ele precisava ficar apenas como espectador, talvez, venha cá, Chopin, ela disse, agachando-se, movida de uma ternura que poderia estar escondida em algum porão, ela recebeu os afagos daquele ser, ele não lhe imputava nada, apenas a aguardava dentro da sua condição canina, experimentaram o prazer sem cobranças, dias assim, pensava, tudo tão estranho, viu, Chopin, estou aqui, e é esse o amor que eu quero para mim, dizia, enquanto o cão só cheirava seu cangote, faz de conta que o mundo está curado, e olhava pela janela as pessoas andando sem temer, o medo e suas trapaças esvaindo-se, dando espaço a outras sensações, as boas sensações, e que hoje o sol vai se pôr no horizonte, e que o silêncio era como uma música que alinhava os sentimentos, e que ela não estava temendo mais viver neste lugar porque fazia de conta que era verdadeiro sentir prazer com o que lhe fosse pleno, e que fosse o amor a mola que nos move para seguir, antes, enquanto que a saudade abrisse um leque e todas as coisas viessem nos abraçar, ela se esticou na cadeira de frente ao computador, de repente notou que o dia corria rápido entre os dedos, foi à geladeira beber alguma coisa, reagir, sussurrava, enquanto descontraía os músculos do corpo, ofereceu um biscoito ao cachorro, deitara-se no chão para se alongar, era a vida que gostaria, eu não preciso disso, ainda assim, tornou a pensar, os pensamentos dela eram para fora, como um suspiro mesmo, e ela ria, de repente o cão vinha ficar por perto, só para ter a certeza de que era o amor que os nutria, ela se fazia plena, sofrer, sim, talvez, disse para si mesma, o cão a olhava, um silêncio entre as palavras e eles se olhavam, ela e o cão, o chão, a rua, as pessoas, tudo dentro da gente que se move e as coisas que a gente pensa que pode controlar, nada era tão previsível quanto estar, e viver, o que seria, ela se perguntava, talvez um dia vou deixar de sentir saudade, talvez um dia eu goste de ficar perto, talvez um dia o mundo mude, e ela tranquila olhando o teto da sala, de leve respirava, olhos felizes de gratidão, e que tudo enfim se reconecte, e ela olhava para dentro, e de dentro via o mundo que queria encontrar aqui fora, foi se abrindo toda, os músculos leves, a vida suave, o sexo vivo, pôs-se a ter o direito adquirido e conquistado, olhou por um instante como quem nunca esqueceu as coisas que viveu, e por fim,
adormeceu
Escritor e arte-educador, nascido no Rio de Janeiro. Publicou os livros de contos “A suspeita da imperfeição”, “Poema”, “Amores, truques e outras versões” e “As horas”; os infantis “O pequeno Hamlet”, “A galinha malcriada”, “A história do menino”, “A menina e a sapatilha e o menino e a chuteira”e “O gigante”; e os romances “Longe dos olhos”, o elogiado “Antes que Deus me esqueça” e “Para os que ficam”. Participou do projeto social de incentivo à leitura “Praça da leitura” e foi um dos curadores do Prêmio literário do ensino fundamental do Rio de Janeiro. Seus contos já foram traduzidos para vários idiomas em periódicos e publicações por todo o mundo.
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