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Aida Gomes

Atualizado: 28 de fev. de 2022




BICHO QUER CARINHO


Faz três meses. Quase noite, a Filipa me apareceu. Um olho fechado. Meio estripada. Foi bem judiada pelo povo que bota flor, rosa, margarida; bota arroz, vinho, laranja, papaia e melancia inteira na beira do mar. E depois, o mar faz o quê com as coisas que o povo joga em cima? O mar vai e vem, e atira na areia flor, papaia e garrafa de vinho.


Antes de encontrar a Filipa mais cega que viva, até onde a vista alcança era só bagulho que o mar despejou. E eu me pergunto: Como é que, com tanta gente passando mal, o povo segue atirando comida no mar? Povo bárbaro professando a Iemanjá, sem dar ouvidos à palavra de Jeová. Me pergunto mais ainda: Essa flor e comida jogada na areia, quem é que vai arrumar? Alguém vai ter de limpar.


Encontrei a Filipa sangrada e judiada, picando melancia na areia. Tentei agarrá-la, dar-lhe meu carinho: Eu te cuido, vem comigo. E aí, ela se deixou levar, meio assustada. Um olho fechado. Em casa, bebeu uns golinho d´água de espinheira-santa e uns baguinho de milho. O Josenildo me encontrou lavando o olho dela com algodão molhado no soro e água de alecrim da mata. E daí ele me xingou: Thalita, não traz mais coisa do mar.


Desde essa pandemia, ele me fala: Thalita, não sai de casa; o mundo tá perigoso. Nem um dia casada, ele me proibiu de trabalhar fora de casa. Se saio, volto correndo, senão o bicho vai pegar. Daí eu fico o dia todo arrumando a cozinha, limpando o quarto e a sala. Varrendo o pátio. Olhando a rua. Me canso, e vou ver as coisa que o mar jogou na areia. Volto e o Josenildo soltando queixa: Thalita, não traz nada do mar pra casa.


Mas eu gosto de trazer flor bonita jogada na areia. Queria trazer pássaro de perna fina encarnada, mas esse bicho não se deixa pegar. Trago concha azul, cinzenta e dourada, concha que nem cor tem, concha furada no meio, concha que nem o mar quer. Coisa linda que o mar dá. Aí, dou banho de água quente e sabão na concha, e depois passo óleo Johnson. Daí a concha ganha brilho, e eu falo para o Josenildo: Você já viu coisa tão linda? E ele acaba aceitando as concha no chão do pátio e na janela da casa. Só a Filipa ele não aceita. Ela, não botando ovo, não presta.


Eu, estes três meses defendendo a minha galinha caipirinha, d’ estressada não tem nada, parece cachorro, me seguindo pela casa. Tem cama no pátio, mas lá, ela não para. O olho curado, logo que abre, torna a fechar. Acho que ela não tá nem enxergando. Mas, meio cega, me faz escolta da cozinha para a sala, do quarto vem junto comigo para o pátio. Ontem, ela apanhou um susto, e se escondeu no ninho dela. É que o Josenildo voltou da cidade bem bravo. Foi espancado. Na cidade, a tratar assunto. Problema do lado da família dele. E daí apareceu a polícia, e por qualquer coisa, foi amassado, surrado, pisado. Não adiantou ele mostrar documento de trabalho, o que conta nesta terra é a pele, e pele de negro é documento sem lei. Azar dele, nascer da cor da terra. A irmã, a Lívia, saiu bem clara. A guria dá mostra de cabelo cacheado, mas não passa por negra. O Josenildo é que não, apareceu-me de olho inchado, e dor de costa da judiada da polícia. Muito bravo com as lei desta terra.


Eu estava nem aí, falando bobagem com a Filipa: Bichinho, te levo no oftalmologista? É que tu tá cega d´um olho. Rindo, imaginando galinha de óculo. E daí, o Josenildo chegou e custou ele pegar a calma. Precisei de fazer defumação de sete erva pra dar força de jurema, renovar as energia e abrir os caminho.


Aqueci água, ele tomou banho. Se secou e bebeu três gotinha de espinheira-santa e valeriana. Dei um caldo, ele comeu. Passei algodão com soro e alecrim-bravo no olho inchado. Nas costela dorida, esfreguei pomada de barbatimão, garra-do-diabo e unha-de-gato. O Brasil tem erva que cura sem interferência de pajé.


Hoje, ele acordou sem queixa. Levei ele no pátio. É que a Filipa botou o primeiro ovo. Ele, de contente, agarrou ela. Ela deixou-se agarrar. Ele fez carícia, ela mansinha. Ele entendeu que, nesta terra, até bicho precisa de carinho.



 

Aida Gomes nasceu em Angola e trabalhou, nas últimas décadas, para missões de paz das Nações Unidas em Kosovo, Libéria, Guiné-Bissau, Angola, Sudão, Moçambique, Suriname e Camboja. É, no momento, doutouranda na Universidade Federal de Rio Grande (FURG). Publicou em 2011 o romance “Os Pretos de Pousaflores” (D. Quixote/Leya, Lisboa). Tem diversos textos publicados nas revistas: BUALA; InComunidade; Capitolina Books; Pixé (Brasil); Development Workshop (Luanda); Occasional Papers Series, Universidade de Nijmegen (Holanda); Revue Noire (Paris).

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